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quarta-feira, dezembro 15, 2010

A tempestade grande és tu

O tempo passa com o tempo (deveria passar, não deveria?), chuva, sol, neve, nevoeiro, mas a tempestade grande és tu. Sei lá porquê!

José Pedro Cadima

quinta-feira, outubro 23, 2008

O verdadeiro prazer - III

Dia 3: Ontem, nem pensei. Limitei-me a deixar correr as palavras “então até amanhã Alexandre” na minha cabeça, à procura de uma imagem em que me segurar, à procura de encontrar algo a que me agarrar. Hoje, depois de, a partir das dezasseis horas de ontem, ter entrado de férias, a voz voltou:
“Nunca tinhas sentido tal ansiedade, não é verdade? É normal que assim fiques. Mantém a coragem na expressão do teu rosto e nas tuas palavras”.
“Hoje, ao saíres, vais consumar o acto: vais seduzi-la. Vais mostrar que és capaz, mostrar a ti mesmo que consegues!”
“- Assim farei, porque tu mo dizes. Se contigo até aqui cheguei, é contigo que lá vou chegar.”
De novo no sítio de ontem, à mesma hora, com o mesmo atraso por parte dela. Por fim, ela chegou e lá fomos em silêncio até ao parque, alimentando uma conversa fútil, comigo apenas a seguir as boas regras do falar nas alturas certas, dizendo as coisas certas. Ela parecia encantada, enquanto eu, observando-a desta forma distante, começava a ver nela uma pessoa algo enfadonha mas ainda com um “charme” que me atraía. Entretanto, as regras que ia seguindo, não me deixando ser eu, em sentido autêntico, deixavam-me desconfortável.
Fomos até uma parte mais escondida daquele belo parque.
“Atrasa o teu passo. Deixa-a ultrapassar-te e abraça-a por trás! Ela vai adorar…”
Assim fiz, mais uma vez. Mais uma miserável vez, segui uma ordem que me levaria à vitória. Não me senti confortável, no entanto. Antes, senti senti um esboço de revolta na minha alma. Todavia, neste caso, os fins justificavam os meios.
A respiração dela e a minha ficaram em alvoroço com esse abraço. As mãos dela cobriam as minhas e o meu corpo apertava-se contra o dela e o dela contra o meu. Era mútuo o agitar dos sentidos. Rodeei-a, segredando-lhe ao ouvido:
- Não esperavas nada disto de mim, minha rosa, flor do meu jardim?
Enquanto isso, questionava-me sobre se não estaria a ser lamechas.
Ela corava e eu beijava as suas bochechas coradas. Ela sorria e eu beijava-lhe as covinhas da cara. O beijo boca a boca aproximava-se. Eu consegui-a vê-lo ao longe, a correr. Chegaria depressa!
As minhas mãos subiram quase até aos seus seios e a sua cabeça inclinou-se para trás. Eu, entretanto, inclinei-me para um dos lados e, no momento em que a sua cabeça se virou para mim, estávamos com os nossos lábios frente a frente.
“Não o faças! Agora que tens o poder da sedução, vinga-te! Não foi ela que te repudiou um dia? Não foi ela que te fez sofrer uma vez ou até mais vezes? Foi, não foi? Ela nem bela chega a ser. Tu nem tens a certeza de querer tê-la! Mostra-te superior. Terás quem te mereça. Não uma mulher fútil… Retirarás daí outro prazer. Acredita que esse será bem maior. A mente sobre o corpo, não é o teu tipo? Não é o que ansiavas? Vais beijá-la ou rejeitá-la, à semelhança do que ela te fez, antes? ..."
"...Ensinei-te a obedecer às minhas ordens, para teu bem. Agora, apenas te deixo este conselho: faz a tua escolha!”
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José Pedro Cadima

sábado, outubro 18, 2008

O verdadeiro prazer - II

Dia 2: “É tudo uma questão de timing; uma questão de saber dizer as coisas certas nas alturas certas; uma questão de tudo o resto não existir ou, se existir, apresentarmo-nos de igual para igual ou até superiores. Isso impressiona; chama-se segurança. Toda a gente ambiciona sentir isso e, quando alguém tem confiança, desperta interesse! Parece que o que dizes é realmente verdade, é realmente importante, é realmente interessante, mas, se virmos bem, tudo o que digas ou possas dizer é sempre descartável. Os seres humanos funcionam assim.”
Os ensinamentos que me são transmitidos são assustadoramente assertivos. Se calhar é isso que me faz ter interesse neles… Se calhar é essa a ideia que devia ter de tudo. Ontem… Como é que ontem?! Oh… Será que é esta voz que me fez ganhar coragem? Será mesmo o meu subconsciente? “Não importa…” Pois não…Nada importa!
Ontem mandei uma mensagem à Rita a convidá-la para sair e ela disse que sim. Vamos dar um passeio pela cidade, ver os jardins e assim…
Combinámos encontrarmo-nos junto à escola. Ela está atrasada cinco minutos, mas já a vejo ao fundo. Vem com seus cabelos castanhos decoradas com madeixas naturais loiras. Os seus cabelos são levados com o vento. A primeira vez que a vi foi ao vento. A primeira vez que reparei nela, era o vento que a puxava, levando-a pelos seus cabelos…
- Olá! – disse a sorrir
- Olá! – respondeu ela com um sorriso copiado do meu
Começámos a andar. Entrámos num jardim e nenhum de nós falava. “Coragem”. Disse a voz, e eu ganhei coragem e as palavras saíram:
- Estás melhor que ontem? Já tens tudo na cabeça?
- Já! – sorriu-me
“A mentira é tão bonita. Não te preocupes com esse assunto. Comenta algo, critica, mostra-te de pensamentos próprios, deixa-a a pensar. A confusão é meio caminho…”
- Gosto de ver aqueles idiotas ali, com 2 pares de óculos de sol - ela riu-se, concordou e continuou a conversa.
Entretanto, a voz ia-me dizendo, constantemente: “espera”. Ela, por sua vez, ia falando.
Como gostam estas raparigas de falar, como gostam que concordem com elas. É tudo isso o que importa, o timing.
“Sempre aprendeste alguma coisa. Rápido! Faz um comentário sobre aquele cão. Não sejas cómico desta vez”. E não fui. Crucifiquei o cão, pela nojice como se apresentava. Rita concordou com cada letra do que disse, até com os “á” sem “h”, isto é, mal escritos e mal ditos.
A tarde foi boa. Cheguei a abraçá-la uma ou outra vez. Assumi uma postura familiar, de amigo íntimo. Tentei ganhar-lhe a confiança. Tive coragem para lhe falar. Tive segurança ao falar. Mantive-me calado de quando em quando. É giro impressionar alguém. É tão giro impressionar alguém. Talvez seja isso que nos faz vazios: ter que respeitar certas coisas para poder ter outras. É uma espécie de custo de oportunidade!
Ela estava a adorar. Á medida que a tarde corria isso sugeria-se mais óbvio: nos comentários que fazia, na familiaridade com que me tratava. Pela minha parte, tudo isso me fez sentir miserável. Como vou agora acreditar em mim? Não… na voz, porque quando estamos desesperados é noutros que nos apoiamos e noutros que acreditamos, e quando os outros estão certos, fingimos ser como eles.
- Então, até amanhã Alexandre!
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José Pedro Cadima

segunda-feira, outubro 13, 2008

O verdadeiro prazer - I

Dia 1: Choro, choro, choro. Mais valia o suicídio a isto! Mais valia pôr fim a todo este universo que criei em minha volta. Mais valia perder a vida.
“Escuta!”.
A vida não faz sentido. Nasci feio. Nasci o mais feio!
“Escuta!”.
Uh?! Uma vozinha interrompeu o meu pensamento.
"- Quem és tu?!"
“Responde isso a ti mesmo e mais tarde trabalharemos na minha identidade”.
A minha mente perdia-se nesta frase mas, antes de poder sequer responder, a pequena voz, que parecia partir do meu subconsciente, interveio novamente:
“Se te achas capaz de ser aquilo que querias, escuta-me e farás o que te direi. Dar-te-ei o dom da sedução”.
Que resposta poderia eu dar a isto? O que eu queria, a voz já o sabia: queria ter o poder de manipular como me manipulam a mim, que é o que importa neste mundo.
"- Eu aceito… Dá-me a ordem! Eu seguirei tudo!"
“Sai à rua!"
E os seus desejos, que não eram mais que cumprir os meus, foram cumpridos.
“Café lá da escola…”
E lá fui, seguindo cada passo que me era sugerido. Quem estaria lá que eu desejasse tanto?
Entro no café. Ao fundo está a Rita, a bela e única Rita, que tanto eu desejei que olhasse para mim e tanto me deu para trás… Que estou aqui a fazer? Já não a desejo… Pelo menos, não tanto como quando era ela o meu único desejo.
“Se já a desejaste tanto, é impossível que a chama se tenha apagado por completo. Apenas a acalmaste”.
Transpirei, tremi.
“Não tenhas medo, ela quer-te!”.
"- Quer?"
“Sim, quer, e tu também. E vais tê-la porque a mereces”.
Voltei a transpirar.
“Avança!”.
Assim fiz…
- Olá Rita! – disse
- Olá Alexandre… - respondeu com um ar um pouco abatido. Não parecia contente de todo em ver-me….
“Pergunta o que se passa! Junta-lhe humor… Fá-la sorrir e elogia esse facto!”.
"- Perdi-me. O que tu, voz dos céus me pedes é demasiado para mim…"
“O importante é não te deixares incomodar ou amedrontar. Ela ou uma cadeira são a mesma coisa. Tens que conquistar para poderes possuir. Faz o que te digo! Confia. Faz como que te disse!”.
- Que se passa? Pareces abatida… (como vou eu juntar humor a isto!?).
“ Se estás triste por causa do cabelo não te preocupes, ele continua uma lástima!”
– Se estás triste por causa do cabelo não te preocupes, ele continua uma lástima!
Ela riu-se.
- Oh!
- Estava a ver que não conseguia sacar de ti um sorriso hoje.
- Conseguiste! – sorriu
E que belo sorriso…
“Sorri para ela e inclina os teus olhos para ela. Baixa as pálpebras, deixando-as entre-abertas”.
Assim fiz.
- Estás diferente!
A seguir à resposta dela, a voz surgiu para me fortalecer com a sua sabedoria:
“É… Dizem que cresci. A pergunta é se isso será bom! Sê sarcástico!”
E assim fiz.
- É! Dizem que cresci, mas ainda não sei se isso é bom. Se é que me percebes – sorri
- Se calhar até é… - sorriu para mim e bebeu um pouco de sumo de laranja que tinha no seu copo
- Que faço agora!?
“ Tens que ir! Diz que estás atrasado. O tempo é sempre fundamental.”
- Olha, tenho que ir !
“Muitas coisas interessantes me esperam!”
– Muitas coisas interessantes me esperam!
“Não pareças intimidado…”
"- Ok., ok.!"
- Não sou interessante, não é?
“Talvez! Vemos isso noutro dia…”
– Talvez! Vemos isso noutro dia! – sorri.
Despedi-me e fui em direcção à porta.
“Mostra-te interessado! Diz-lhe algo e depois diz para esquecer”
- Olha Rita… e se… nah. Esquece!
- Agora não esqueço! Que querias perguntar?
“Nega tudo…”
– Não era nada…
“Convida-a para saírem amanhã.”
- Diz, senão fico zangada contigo!
- Queres sair amanhã?
- Quero! Tens o meu número?
Então não havia de ter? Tanto tentava chamar-lhe a atenção, tanto transpirava à sua beira, sem que ela me passasse a bola. Tinha o Carlos atrás de si, muito mais giro, muito mais interessante …
- Sim, tenho o teu número! Então, logo digo-te algo!
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José Pedro Cadima

domingo, setembro 21, 2008

Crianças no Cinema

O rapaz esperava sentado nas escadas, um pouco impaciente. A rapariga tinha ido à casa de banho. O rapaz olhava tudo, até as outras raparigas que passavam. Aproveitava ou tentava aproveitar este pequeno tempo de liberdade, mas não conseguia. Queria a sua apaixonada. Que ela voltasse depressa. Por isso mesmo tinha comprado bilhetes para o cinema, para a ter bem próxima de si.
A rapariga, na casa de banha, estava nervosa vá-se lá saber porquê! Desde sempre, esta adorável menina tinha exprimia nervosismo por tudo e por nada. Até houve um ano em que, sem querer, pisou e matou um lagarto ou, pelo menos, assim pensou, pois tinha-lhe saído e cauda (quando esta parou de mexer, a menina havia chorado copiosamente). Agora, na casa de banho, ela apenas pintava os olhos e via-se ao espelho, para estar mais apresentável.
Nunca tinha ido ao cinema com um namorado. Era o seu primeiro namoro “a sério”, porque este tinha beijo com sabor. A nenhum dos outros tinha ela dado um beijo com a língua. Apenas a este namorado, e agora iam para o cinema ficar umas horas aos beijos. Não era por acaso que tinha sido escolhido o filme com mais tempo que estava em exibição.
A rapariga aproximou-se do rapaz e estendeu-lhe a mão para ele a ver. Este, estava concentrado a ler os resumos dos filmes numa pequena brochura mas, ao ver a mão da sua amada, rapidamente lhe deu a mão e se levantou, engoliu em seco e esticou-se devagar para lhe dar um beijo. Um toque de lábios, apenas. A língua? Essa guardá-la-ia para depois.
Entraram de mãos dadas. A sala estava escura e grande. Tinha pouca gente. Isto sim era cinema, para eles. Sentiam arrepios na espinha, estavam nervosos mas desejavam-se e, degrau a degrau, desceram a sala de cinema até dois terços dela. Sentaram-se num canto da fila para não darem tanto nas vistas e esperaram…Ainda davam os anúncios e nem o rapaz nem a rapariga eram capazes de abrir a boca e agir naturalmente. Parece que para ambos era a primeira vez que acontecia tal experiência…
O filme começou, as primeiras imagens de filme começaram a aparecer: o director, o produtor, os actores mais importantes, e, por detrás, surgiam as imagens do início do enredo. Era sobre um mundo mágico, sobre amor e harmonia. Eles não haviam escolhido o filme por isto mas sim devido à duração. Seria isso ironia? Talvez, mas os jovens não prestaram atenção ao filme e ele, que estava mais impaciente que nervoso, fazendo contraste com ela que estava mais nervosa que impaciente, deu-lhe um beijo, um magnífico e sedutor beijo.
A rapariga, que não estava preparada, abriu a boca rapidamente, num acto quase de quem se propunha trincar algo, mas este contraste não durou muito. Logo após, a sincronia pareceu perfeita. Beijo atrás de beijo, eles foram cumprindo o que o destino lhes reservara para aquele lugar. Beijarem-se, beijarem-se, beijarem-se … As mãos do rapaz, que eram mais curiosas do que a sua língua, que apenas se mantinha na boca da rapariga, procuraram o resto do corpo da sua apaixonado e, com um puxão na perna dela, fizeram com ela ficasse com a mesma em cima do colo dele. Os Beijos não paravam. As mãos dela ganharam vida pouco depois, mas eram muito menos curiosas que as dele: apenas lhe amarraram o cabelo, puxando-o para ela.
Num certo momento, as portas abriram-se e a música passou a ser outra que não a do genérico do filme… Eles pararam… Olhavam-se apaixonadamente. Nunca tinham sido tanto um do outro… Dentro deles gritava-se a palavra amor.
Quando, mais velhos… Não… Não se casaram, nem se lembravam deste momento. Apenas se lembravam das zangas que tiveram. Do amor não… porque isso… Isso é só nos filmes…

José Pedro Cadima
(excerto de texto intitulado “Ano de abertura”)

domingo, setembro 14, 2008

A Bela Adormecida

À nascença, são-nos concedidos dons e defeitos, somos marcados para certos acontecimentos mas, por vezes, somos apenas marcados. Todo um reino pode sucumbir ao destino de uma só pessoa. Todo um mundo pode chorar pelos feitos de um só homem…

No dia de maior calor, ela subiu a uma torre. Não sabia o que procurava. Não sabia porque ali estava, mas estava traçado que assim fosse. Ela estava marcada…
Era o fuso de uma roca que a esperava. Uma roca espiral, da melhor madeira que se podia encontrar. Tão poderoso que até na morte poderia mandar. Não mandou, já que alguém tinha marcado algo por cima. Já outro destino tinha sido imposto!
Menina curiosa, sempre com a vontade de em tudo tocar, picou-se na roca, que a fez desmaiar; tudo muito mágico mas, mesmo assim, adormecendo um reino e selando um destino.

Experimentou um sentimento estranho, trazendo todas as cores e todas as formas, cheio de arestas mas parecido com uma esfera. Sim, por momentos ela viu a confusão… Abriu-se uma porta, uma comporta, uma escotilha. Estava confusa. Era uma passagem qualquer, era uma entrada que só ela podia penetrar. Era a eternidade. Ela não sabia disso… A curiosidade nem sempre traz informação…
A curiosidade já a tinha levado até ali. Podia levá-la muito mais longe. Como um insecto atrás de uma luz ou outro ser em busca de um objecto brilhante, ela mergulhou. Mergulhou sem saber para o quê, mas mergulhou. A curiosidade não precisa de causa! Mergulhou com toda a determinação e com quanta intensidade pôde. Não sabia de que se tratava, mas mergulhou.

E ainda hoje a Bela Adormecida se encontra no mais profundo sono à espera que um príncipe lhe dê o beijo que a faça acordar.

José Pedro Cadima

sexta-feira, setembro 05, 2008

Tu

Senti-me mal. Pensei até chorar. Não era capaz: tinha aprendido a não o fazer.
Decidi tomar um banho. A água morna acalmou-me. Relaxou-me cada músculo anteriormente preparado para rebentar. Mas não chegava.
Fui à casa de banho buscar um pente. O pente deslizou-me sobre os cabelos encaracolados. Arrancou montes deles.
Penteei o cabelo para à frente, para me tapar os olhos. Aos poucos, as pontas encaracolaram-se para cima e deixaram ver a minha cara novamente.
Continuo sob pressão. Se não gritar, reterei tudo dentro de mim. Se gritar, serei egoísta.
Decidi masturbar-me. Não tenho vontade, não tenho desejo. Apenas quero libertar a tensão.

José Pedro Cadima

quarta-feira, agosto 27, 2008

Abdicar

Abdicar… Aí está algo realmente difícil. Só a palavra já inspira medo.
Abdicar… A sua força derrubaria não uma montanha mas uma serra inteira. O seu peso puxaria o sol até mim.
Já perdi tudo, já perdi tudo tantas vezes… Agora abdico, abdico daquilo que uma vez perdi e de que, quando tomei a certeza que era meu, abdiquei.

Acendo um cigarro (eu não fumo, apenas me vejo com um cigarro nos momentos mais mórbidos; talvez seja em razão da proximidade da morte), vejo o fumo sair e, subitamente, começa a chover (o tempo é sempre o mesmo, a chuva cai dos meus olhos!). Apago o cigarro e percebo que estou descalço, nu e num deserto gelado, na noite mais fria do ano (sentimento constante).

Abdiquei da lua pois não encontrei nada mais belo. Desejei ser outro. Desejei que tudo fosse diferente. Depois desejei ser eu mesmo e ter tudo como agora. Tornei isto num ciclo de desejos. Por fim, passei a contradizer-me. Agora tento perceber qual deles sou e como está tudo.

O vento gelado sopra e trás com ele neve. O meu corpo não cede. O fumo daquele cigarro é como a dor que sinto: algo acabado de tirar do coração, sempre quente.
A dor é que me mantém vivo. É a prova de que sinto. Se não houvesse dor, não havia nada.
Dirijo-me para norte. Qualquer Canguru ficará feliz por me ver e acolher em sua casa.

Abdiquei ainda no outro dia de um pouco de tempo da minha vida. Foi por uma boa razão: meter o ombro deslocado no sítio. Tive, pois claro, o custo de oportunidade: não vi de que é que tive que abdicar mais. Quando souber o que foi, chorarei por isso.

Estou a ver ao fundo a casa gelada.
- Abdicarás do teu deserto gelado para entrar nesta bela casa? – perguntou o Canguru.
- Ó meu filho da puta… Põe-te no caralho!

José Pedro Cadima

sexta-feira, agosto 22, 2008

A Janela

Há dias em que a janela tenta falar de mim às pessoas que não conheço. Tem vontade de me dar a conhecer. Tem vontade de contar meus segredos a toda gente. Nas ruas da vizinhança, ela fala e tenta não se calar. Tim-tim por tim, conta que esta manhã me ajoelhei perante mim mesmo, ao tropeçar nas escadas. Já dizia eu a mim mesmo: “Um dia cairei para me ajoelhar em frente de algo que todos os dias piso”.
Certo dia, ouvi a janela gritar. Queria contar ao senhor coelho que lá fora passava que eu queria ir atrás dele para o matar. Não podia ser assim! O homem, enquanto caçador, tem que matar para comer. O coelho tem que morrer para que eu possa dizer que comi.
Tranquei-me cá dentro, engendrando modo de a fazer calar. Se a via aberta, fechava-lhe a boca. Lá para fora não diria mais nada. Mas não era isso que a calava: os vidros partiram, como que lábios a rasgar, e a janela falava, falava. Nada a calava.
- Oh janela, cala-te! - dizia eu transtornado – Não contes mais a minha vida aos senhores que moram aqui ao lado.
Já todos sabiam quem eu era na rua; não bastava que soubessem quem eu era em casa. Já todos sabiam onde vivia; não bastava sabê-lo eu. Talvez um dia, bêbado e sem encontrar meu caminho, isso me possa ajudar. A quem enganava eu? Bêbado, sei melhor o caminho para casa. Sempre a direito e contornando as curvas, nunca me engano.
– Mas janela, oh minha janela, cala-te! – Não se calava. Pedi um tempo de silêncio. Não o respeitou… Cada dia que passava, mais as pessoas para mim apontavam. Comentavam umas com as outras quando saia, quando entrava… Perseguiam-me, verdadeiramente. Sei que sim, que sabiam meus segredos, meus fracassos. A janela contara tudo, até o chichi que fizera na cama, em criança. E eles, eles que me perseguiam, usariam isso para me assustar, para me corromper, para me atacar. Estava criada a oportunidade de me chantagearem!
Fartei-me da janela. Não se calava… Metia-me medo, agora mais que nunca. O que iria ela dizer-me a mim? A mim, digo, não aos outros. Os outros, sabia eu que já sabiam tudo. Os outros, sabia eu que me iriam fazer sofrer e destruir. Tinha medo do que a janela me diria. Tinha tanto medo… Poderia ela saber quando eu morreria?
Um dia, sem sequer a fechar, comprei tijolos e cimento e, a bem ou a mal, fechei-a para que se calasse de vez. Achei-me protegido.
- Agora, já não falas. Nada mais lhes dirás! Não lhes poderás dizer que fui para longe. Ficarei a salvo, sabes!? A salvo! Apenas mais esta noite dormirei em casa e, para entrarem, teriam que fazer tanto barulho que me mataria primeiro. Teriam que destruir este muro para aqui entrar.
*
De noite choveu. O vento era tanto… A janela batia. Batia com tanta força… Imaginando-os lá fora, aos outros, aos seus horrores, o homem da janela ficou com tanto medo que agarrou numa caçadeira que tinha, meteu-lhe cartuchos e disparou.

José Pedro Cadima