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quarta-feira, novembro 26, 2008

As portas de um labirinto

Abro uma porta. Entro num compartimento. Sinto-me só. Tem quatro paredes e uma porta em cada uma. Abro a da frente e a de trás fecha-se. Dou um passo atrás, dou um passo para o lado, abro a porta do lado esquerdo e a da frente fecha-se. Dou dois passos para o lado direito e abro essa porta, a do lado esquerdo fecha-se. Dou um passo para a esquerda e um para trás, viro-me para a porta de onde vim e abro-a, fecha-se de novo a porta que tinha aberto e eu vou em frente, no caminho para o passado.
Vejo portas a abrir-se e a fechar-se, sempre um ciclo que pareceu ocorrer na minha vida. Encontro compartimentos hexagonais ou até circulos com uma única porta, um único caminho a tomar, que quando se entra nesse compartimento nem para trás dá para voltar. Há salas estranhas, em que abrir uma porta faz abrir três ou quatro. Encontro salas com portas trancadas, que é preciso forçar para entrar. Encontro compartimentos que a única porta que têm é aquela pela qual viemos. Encontro salas que, para além das portas laterais, têm no meio um poço; pior, encontro salas que só têm o poço.
Paro. Tenho a memória desta sala, tenho a memória da minha escolha, da escolha da porta que segui. Lembro-me que foi difícil: seis portas e um poço, as saídas desta sala; dei duas voltas ao poço; tinha já atravessado mais de mil salas, aberto mais de mil portas e parecia tudo igual, parecia estar sempre no mesmo sítio, e o poço, era a única entrada que não tinha experimentado. Mas passou a correr por mim alguém, abrindo uma porta e escolhendo rapidamente outra. Era um conselho…
Certas pessoas atravessam umas portas para encontrar riqueza. Outros atravessam outras portas para achar amor. Uns espreitam as fechaduras à procura de ver a felicidade. Uns quantos correm por todos os compartimentos. Esses querem tudo. Eu já não sei porque entrei aqui, não sei onde quero chegar. Atravesso as portas e os compartimentos como se tivesse a passear, a ver os outros viver. Não sei onde quero chegar.
Lembro-me de uma sala que baptizei “uma questão de tempo”, porque ela era mesmo isso: uma questão de tempo. Devia ser uma penalização por ter escolhido a porta errada. Era uma sala que, quando nela se entrava, não se encontrava nada, nem mesmo a porta por onde viéramos. E porque pensava eu estar tudo acabado, deitei-me e adormeci à espera que a morte me levasse. No momento mais profundo do meu sono, algo me acordou. Havia uma porta à minha espera, no tecto da sala, um alçapão para um nível acima daquele em que me encontrava.
Nesta volta ao passado, vejo mais pessoas atravessar outras portas, rapidamente, quase sem pensar, deixar o instinto escolher por elas, viver rapidamente, passar tudo aquilo. Chegarão elas ao fim mais rapidamente que eu? Eu espero, penso, toco a cada porta; espreito se na outra está aquilo que eu não sei se procuro. Sinto a porta. Tento sentir o que está do lado de lá. Desenho caminhos, escolho previamente portas antes de saber como me vou deslocar até elas.
Tantas portas que odiei escolher. Agora, arrependo-me de cada uma das que abri com as minhas próprias mãos. A caixa de Pandora trouxe-me, de facto, algo. Errado! Eu é que entrei pela caixa a dentro. Eu é que enfrentei todas aquelas coisas e, no fim da caixa, no fim do labirinto, alimentei a esperança de achar aquilo que não sabia se queria; melhor: aquilo que ainda não sei se quero.

José Pedro Cadima

quarta-feira, novembro 19, 2008

Querido Pai Natal (2)

Queria pedir-te alguma sanidade, pois é isso que mais me falta. A paz no mundo não me aquece nem me arrefece. É apenas uma utopia que muitos desejam sem sequer saber porquê. A guerra não é aqui; não vai cá chegar.
Quereria pedir-te alguma noção do que se passa. Sinto-me perdido; sinto-o de verdade. Não vejo dia em que não anoiteça, nem noite em que não veja o sol nascer. Todo o meu corpo suporta este cansaço, queixando-se apenas da saudade dos lençóis e não da cama.
Não te peço nada disso, por mais poder que tenhas. Não fui suficiente bom menino e castiguei o meu corpo com todas estas penosas preocupações. Em breve emergirá a verdade de tudo. Em breve perderei o resto da sanidade que me resta.
Não sei em que ano estamos. Talvez seja o ano dois mil ou o ano quatro mil. Pouco importa. A esperança média de vida não chega a um século e o ano faz apenas parte de uma data marcada para efeitos gerais. Também não me lembro do dia em que faço anos e já lá vão tantos que nem a minha idade sei. Pouco me importa se sou adolescente, adulto ou idoso. Continuo a ser eu. Pouco me importa se faço anos em Janeiro ou Agosto. Continuo a ter a mesma mãe.
Talvez o Pai Natal me pudesse dar a entender todas estas coisas e porque é que as marcamos. Talvez, nessas circunstâncias, também me possa nascer a vontade de saber as datas em nasci, em que ano estamos, entre outras.
Tamanho foi o meu desinteresse para com a vida que já não sei se isto é viver. Sei que se parece como tal: respiro, mexo-me, alimento-me, vejo, oiço e agora até escrevo à sua pessoa, que tão pouca gente sabe porque nos visita duas vezes por ano, uma vestido de velho de barbas longas outra de coelho.
Já lhe pedi tantas coisas. Sei que foram mais aquelas em que me deu algo. Ter tanto, fez-me mal. Talvez a culpa seja sua. Mas também outros têm tanto e ainda lhes dão mais e não perdem o interesse em receber. Talvez tudo isto seja apenas fraqueza minha.
O meu desinteresse arrasta-se à tanto tempo que além das datas do meu nascimento, o ano em que estamos, a idade do senhor que ninguém conhece, não sei também identificar muitos dos feriados patrióticos que se avizinham. Serei, por isso, um traidor da pátria? E se o for? Serei traidor de mim mesmo por não me lembrar do dia em que nasci? Que importa!? Talvez importe. Talvez não importe. Não tenho datas. Não sei o nome das pessoas que conheço, e escrevo uma carta à única pessoa que ainda me visita.
Não sei as datas, digo, e confesso-lhe que se não tivesse ouvido um passarinho cantar que amanhã era dia vinte cinco, e feriado, nunca lhe escreveria esta carta interesseira a pedir que neste Abril me traga um pouco de sanidade.


José Pedro Cadima

quinta-feira, outubro 30, 2008

A dama olhada

Silhuetas aos milhares, de homem ou mulher, mas sempre evidenciando-se pelo contorno, pela sua delicadeza, passam nestas ruas.
“Feita para aqui estar, para te seduzir”, disse uma delas. “ Muitas mãos me tocaram e me tentaram domar mas minha mestra, lá em cima, soube ter lábios para aceitar muito poucos dos que tentaram e rejeitar muitos que não me chegaram sequer a tocar”, disse a de cintura mais estreita que por ali passava.
A sua mestra tinha cabelo ondulado, que encaracolava à medida que descia dos seus ombros até meio das costas. Eram pretos. Os seus olhos eram castanhos-claros, com uma leve mistura de mel. Não o percebia bem ao longe, mas que tinham brilho tinham. Percebia-se-lhe juventude e paixão no que fazia, mas o que seria que fazia? Confiarei nas palavras da sua silhueta.
Sua cara apresentava um tom rosa leve, muito leve, aproximando-se do bege. Suas sobrancelhas não eram finas nem grossas; tinham a largura de um lápis ou de um pau de um gelado, se assim preferirem. Consegui cheirar o seu perfume, brevemente, quando passou por mim. Fiquei arrebatado. Fiquei parado a olhar para a frente enquanto a deixava passar por mim e, mais adiante, passava por outros que não faziam como eu. Eu ficara paralisado, com medo de olhar para trás, com medo de me apaixonar, com medo de ver algo que me fizesse corar. A beleza fazia-me corar.
O medo afastou-se. Deve ter percebido que ela já há muito tinha esse efeito em muitos homens. Fiz então o que o resto das pessoas que por ali passavam já tinham feito, que era voltar a olhá-la do ângulo que fosse possível.
Muitos homens a olhavam, muitos a contemplavam, muitos a desejavam. Percebia-se nalguns a paixão que os assaltava. Muitos reteriam a sua imagem para lembrá-la em noites solitárias. Ela era a mais bela figura que alguma vez tinham visto. “Não se vê disto todos os dias”, retorquiu a silhueta de um homem ao pensamento do mesmo.
Também muitas mulheres a olhavam e muitas a odiavam. Comentavam entre elas ser a outra falsa. Invejavam-na e tentavam convencer-se da respectiva superioridade. Outras, por contraponto, retinham a imagem para dela se recordarem em noites solitárias…

José Pedro Cadima

(excerto de texto inédito de 2006, intitulado “Ano de abertura”)

sexta-feira, setembro 21, 2007

Eu senti

Ela chegou. Olhou-me. Terá talvez procurado também o meu olhar. Eu escondi-lho. Se ela o visse, veria demais. Ela sentiu-o. Eu senti-o.
As palavras que saíram de minha boca pareciam ter saído da boca de outro, pareciam ter saído da boca de alguém zangado. Ela procurou resguardar-se daquilo que eu sentia.
As palavras saíram da sua boca, mas as lágrimas antecederam-nas e desceram o seu rosto até, por fim, pinga a pinga, caírem sobre os meus pés mesmo antes da primeira palavra ser dita. Ela sentiu-o. Eu sei que o sentiu.
Eu levantei-me e fiz o que julguei que era apropriado fazer: abracei-a. Fiz de conta que não era aquele alguém zangado que antes parecera. Ela sentiu-o. Eu senti-o.
Ela envolveu-me em seus braços, passando-os por baixo dos meus. Apertou-me com força. Encostámos nossos corpos. Estávamos muito próximos um do outro. Percebê-mo-lo, ela e eu.
Beijei seu pescoço. Cheirei seu cabelo. Apertei-a contra mim, como me habituei e queria fazer e desejei poder fazer para sempre.
Já nos tínhamos sentido assim…
Acariciei a sua cara. Sua pele era mais suave que seda. Acariciou-me também. Sentiu a minha barba, o áspero tocar seus dedos. Sim, já nos tínhamos sentido assim.
Cheguei a sorrir. Cheguei a desenhar muito ao de leve em minha cara um encaracolar de meus lábios nos seus extremos. Percebia-se, agora, na sua face o arrependimento de me ter feito zangar. Ela sentiu-o. Eu senti-o.
Percebi, então, mais uma vez, que estava perante a minha musa. Ela, por contraponto, disse-me que, de todos os seus admiradores, eu seria sempre o seu preferido. Eu acreditei. Ela sentiu-0. Eu senti-o.
Cruzei o meu olhar com o dela. Peguei-a pelos braços, puxei-a mais para mim e dei-lhe um beijo que quis que fosse carinhoso e eterno.

Eu senti-o… Tu sentiste-o?

José Pedro Cadima

Um Beijo

Estão cem pessoas na sala. No entanto, o seu olhar está colocado em mim. Os meus passos percorrem o longo percurso que me leva ao destino. Passa alguém à minha frente mas fica transparente. Consigo ainda vê-la, consigo ainda sentir o seu olhar sobre mim. Não ando; rastejo até ela. Como um caracol, sou lento mas sei que lá vou chegar.
A sua respiração denuncia o seu medo. Apesar de rápida e forte, tenta esconder-se, como um soldado preparado para tudo mas com uma arma apontada à sua cabeça. Eu sou a arma!
O seu olhar e o meu confrontam-se e a cada passo que eu dou na sua direcção ela dá um atrás. Bastaram três passos para ela estar de costas encostadas à parede, três míseros passos para sair do esconderijo e perceber que a arma não a vai matar. O amor é mais forte que o ódio!
Minha cabeça inclina-se para baixo. Ela é mais baixa, mais frágil. Tenho que estar ao seu nível. Tenho de me redimir perante a deusa. Será ela a minha deusa? Agora é a minha respiração que acelera, que sente medo, mas não o escondo. Quero estar com a respiração dela. Quero harmonia!
Morde os lábios. O meu olhar descai-se do seu olhar para os seus lábios. Fui eu que cedi. Apanhado na armadilha de quem tinha medo, afinal sou eu a presa. Ela é a caçadora. Inclino a cabeça para a direita e aproximo meus lábios. Sinto um arrepio.
Nossos olhos semi-cerram-se. No entanto, não paramos de olhar um para o outro. É dos arrepios certamente. Meus braços aproximam-se da sua cintura e, devagar, minhas mãos pousam no seu corpo, como num gesto de baile cuja bailarina quer ser levantada. Mas, no entanto, isso só se faria com os lábios.
Minhas mãos, aos poucos, contornam seu corpo. Uma mão faz o seu corpo contorcer-se enquanto me aproximo para que o meu corpo toque o dela. As suas mãos sobem pelos meus ombros e agarram o meu cabelo com força. Nada as faria largá-lo. Nada!

Ela fecha os olhos. É o momento…

José Pedro Cadima

sábado, dezembro 23, 2006

Querido Pai Natal

Queria pedir-te alguma sanidade, pois é isso que mais me falta. A paz no mundo não me aquece nem me arrefece. É apenas uma utopia que muitos desejam sem sequer saber porquê. A guerra não é aqui; não vai cá chegar.
Quereria pedir-te alguma noção de tudo o que se passa. Sinto-me perdido; sinto-o de verdade. Não vejo dia em que não anoiteça, nem noite em que não veja o sol nascer. Todo o meu corpo suporta este cansaço, queixando-se apenas da saudade dos lençóis e não da cama.
Não te peço nada disso, por mais poder que tenhas. Não fui suficiente bom menino e castiguei o meu corpo com todas estas penosas noções. Em breve emergirá a verdade de tudo. Em breve perderei o resto da sanidade que me resta.
Não sei em que ano estamos. Talvez seja o ano dois mil ou o quatro mil. Pouco importa. A esperança média de vida não chega a um século e o ano faz apenas parte de uma data marcada para efeitos gerais. Também não me lembro do dia em que faço anos e já lá vão tantos que nem a minha idade sei. Pouco me importa se sou adolescente, adulto ou idoso. Continuo a ser eu. Pouco me importa se faço anos em Janeiro ou Agosto. Continuo a ter a mesma mãe.
Talvez o Pai Natal me pudesse dar a entender todas estas coisas e porque é que as marcamos. Talvez, nessas circunstâncias, também me possa dar a vontade de saber as datas que realmente importam: em que dia e mês nasci; em que ano estamos; entre outras. Talvez, quando lho perguntar, mo possa dizer.
Tamanho foi o meu desinteresse para com a vida que já não sei se isto é viver. Sei que se parece com tal: respiro, mexo-me, alimento-me, vejo, oiço e agora até escrevo à sua pessoa, que tão pouca gente sabe porque nos visita duas vezes por ano, uma vestida de velho outra de coelho.
Já lhe pedi tantas coisas. Sei que foram mais aquelas em que me deu algo. Ter tanto fez-me mal. Talvez a culpa seja sua. Mas também outros têm tanto e ainda lhes dão mais e não perdem o interesse em receber. Talvez tudo isto seja apenas fraqueza minha.
O meu desinteresse arrasta-se tanto que além das datas do meu nascimento, o ano em que estamos, a idade do senhor que ninguém conhece, não sei também identificar muitos dos feriados patrióticos que se avizinham aí. Serei por isso um traidor da pátria? E se o for? Serei traidor de mim mesmo por não me lembrar do dia em que nasci? Que importa!? Talvez não importe. Não tenho datas. Não sei o nome das pessoas que conheço, e escrevo uma carta à única pessoa que ainda me visita.
Já não sei as datas e confesso-lhe que se não tivesse ouvido um passarinho cantar que amanhã era dia vinte cinco, e feriado, nunca lhe escreveria esta carta interesseira a pedir que neste Abril me traga um pouco de sanidade.

José Pedro Cadima (2006)