sexta-feira, agosto 22, 2008

A Janela

Há dias em que a janela tenta falar de mim às pessoas que não conheço. Tem vontade de me dar a conhecer. Tem vontade de contar meus segredos a toda gente. Nas ruas da vizinhança, ela fala e tenta não se calar. Tim-tim por tim, conta que esta manhã me ajoelhei perante mim mesmo, ao tropeçar nas escadas. Já dizia eu a mim mesmo: “Um dia cairei para me ajoelhar em frente de algo que todos os dias piso”.
Certo dia, ouvi a janela gritar. Queria contar ao senhor coelho que lá fora passava que eu queria ir atrás dele para o matar. Não podia ser assim! O homem, enquanto caçador, tem que matar para comer. O coelho tem que morrer para que eu possa dizer que comi.
Tranquei-me cá dentro, engendrando modo de a fazer calar. Se a via aberta, fechava-lhe a boca. Lá para fora não diria mais nada. Mas não era isso que a calava: os vidros partiram, como que lábios a rasgar, e a janela falava, falava. Nada a calava.
- Oh janela, cala-te! - dizia eu transtornado – Não contes mais a minha vida aos senhores que moram aqui ao lado.
Já todos sabiam quem eu era na rua; não bastava que soubessem quem eu era em casa. Já todos sabiam onde vivia; não bastava sabê-lo eu. Talvez um dia, bêbado e sem encontrar meu caminho, isso me possa ajudar. A quem enganava eu? Bêbado, sei melhor o caminho para casa. Sempre a direito e contornando as curvas, nunca me engano.
– Mas janela, oh minha janela, cala-te! – Não se calava. Pedi um tempo de silêncio. Não o respeitou… Cada dia que passava, mais as pessoas para mim apontavam. Comentavam umas com as outras quando saia, quando entrava… Perseguiam-me, verdadeiramente. Sei que sim, que sabiam meus segredos, meus fracassos. A janela contara tudo, até o chichi que fizera na cama, em criança. E eles, eles que me perseguiam, usariam isso para me assustar, para me corromper, para me atacar. Estava criada a oportunidade de me chantagearem!
Fartei-me da janela. Não se calava… Metia-me medo, agora mais que nunca. O que iria ela dizer-me a mim? A mim, digo, não aos outros. Os outros, sabia eu que já sabiam tudo. Os outros, sabia eu que me iriam fazer sofrer e destruir. Tinha medo do que a janela me diria. Tinha tanto medo… Poderia ela saber quando eu morreria?
Um dia, sem sequer a fechar, comprei tijolos e cimento e, a bem ou a mal, fechei-a para que se calasse de vez. Achei-me protegido.
- Agora, já não falas. Nada mais lhes dirás! Não lhes poderás dizer que fui para longe. Ficarei a salvo, sabes!? A salvo! Apenas mais esta noite dormirei em casa e, para entrarem, teriam que fazer tanto barulho que me mataria primeiro. Teriam que destruir este muro para aqui entrar.
*
De noite choveu. O vento era tanto… A janela batia. Batia com tanta força… Imaginando-os lá fora, aos outros, aos seus horrores, o homem da janela ficou com tanto medo que agarrou numa caçadeira que tinha, meteu-lhe cartuchos e disparou.

José Pedro Cadima

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma excelente metáfora, magistralmente concebida.
A "janela" metáfora do caminho que nos leva para o exterior, e que nos traz a vida do que lá acontece.
A "janela" que se abre para o nosso interior e que nos revela aquilo que somos e que, muitas vezes, não queremos ver.
Um abraço
Helena