Muitas das situações que vivemos são absurdas. No entanto, esta, depois de morto, ganha um valor para além do absurdo em si: mesmo agora, no inferno, penso em ti.
A vida depois da vida tem destas coisas. Ando perdido por entre o sentido de um mundo cheio de respostas onde, horrivelmente, falho em compreendê-las. A verdade, vista de tão perto, causa-me incompreensão! Talvez se a minha penitência não fosse esta e tu tivesses vindo comigo para aqui, eu me comportasse como o homem que era e sentisse que a verdade era diferente da mentira vivida em terra.
Quando cá cheguei, notei depressa o calor nauseante e espesso que me obriga a contorcer de dor. As almas penadas dos assassinos ouviam-se por entre as paredes do meu novo lar. Percorrendo passeios paralelos à lava, encontro submersos os tesouros perdidos de quem, pela ambição, não se soube controlar.
O inferno em nada se compara à visão que a sociedade mantinha dele. Não há demónios a empurrarem-nos para calabouços ou a enfiarem-nos em enormes caldeirões que fervem sem parar. O inferno reserva-nos a todos algo pior: quem por natureza é mau, terá, tal como um bom, algo que nunca quis perder. Assim, a pena de cada um é cumprida tirando-lhe aquilo que mais deseja.
Os bons nem sempre recebem aquilo que desejam, mas os maus perdem-no sempre. Os maus que querem paz, nunca a irão ter. Gritam e mutilam-se, querem ficar num estado em que nada mais importe, mas importa: ficam com a paz, a paz que nunca lhes chega e nunca os deixa verdadeiramente descansar.
Alguns dos maus são quase bons; queriam, a seu modo, fazer algo pela sociedade. Não fizeram e aqui estão. A sua condenação é feita porque no momento de escolher entre o bem e o mal escolheram não fazer nada e o mal venceu. O assassino que mata é atormentado todas as noites pelo espírito da vítima. O cúmplice é atormentado pela sua consciência. Os que têm um peso na consciência, procuram respostas que já têm. Querem-nas diferentes e afundam-se ao tentar atravessar os canais de lava, pensando que do outro lado a resposta será melhor.
Tanto eu, mau, como tu, boa, fomos condenados. E tu também sofres pela minha penitência, mesmo aí no céu. Sei que assim é. Aqui no inferno, verdade seja dita, existem mais mulheres do que homens. Todas sedentas de mimos e de um companheiro, mas como posso eu desejá-las se só em ti penso?
Quem me dera ter sido um assassino, para perder a paz, ou um cúmplice, para procurar respostas frustrantes. Era mau, mas só às vezes: enxotava o gato e as pessoas, porém, nunca te enxotei a ti. Tinha mesmo a minha pena que ser o teu paraíso, sendo tu quase tão má como eu? Foste para o céu e aqui me deixaste, só para que perdesse o que mais desejava.
José Pedro Cadima
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