quinta-feira, julho 01, 2010

A menina dos cachos

Vou aqui contar uma história que para ti aparecerá como ficção. Os personagens sou eu, tu e todos os que nos rodeiam, pois não queria que fosse uma história em que tudo fosse mera especulação.
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A multidão é um corpo cinzento onde os gestos se repetem até à linha do horizonte. As mesmas vivencias são assuntos de conversa entre os mais variados grupos que se espalham pela avenida. E lá no fundo vai a menina dos cachos, que saltita alheia às repetitivas histórias contadas nas esplanadas da avenida.
Os seus cabelos negros encaracolados caem-lhe pelos ombros de forma doce e fazem perfeita sintonia com o ar jovial que transporta. O dia é de sol nos seus olhos, mesmo que não o seja no céu, e o seu sorriso é quase ingénuo, tamanha a graça que carrega consigo para onde quer que vá.
Quando a menina dos cachos vira para a direita no fim da avenida, um rapaz que saía do café reconhece-a ao longe. Apetece-lhe correr para ela. Não corre. Podia confrontar-se com a vergonha de ficar, sem palvras, à sua frente; podia correr o risco de não ser capaz de lhe dizer o que quer que fosse. E logo num dia como aquele, igualzinho aos outros, em que ela parecia ter decido que o dia seria perfeito.
A menina continuou o seu caminho. Apressando um pouco o passo, desiste de sujeitar-se a tamanha vergonha. Ela tinha desaparecido da sua vista e podia assumir que não a voltaria a encontrar. Chegado à curva, não a vê. Era como se nunca lá tivesse estado. Perdeu então a oportunidade de a ouvir dizer “olá”. O olá que ele mais desejava ouvir nesse dia. Voltou a correr pela rua. Continuou a não a ver.
A menina dos cachos tinha virado à direita para dentro de uma loja três números a seguir à morada da porta da esquina. Tinha entrado para comprar chá. Procurava uma infusão em particular, uma infusão de uma flor de sabor doce.
O rapaz voltou então para trás, desiludido com o objectivo inseguro que a si mesmo tinha proposto. E se o coração alguma vez tinha batido por ela, batia agora pela desesperada corrida que tinha feita até ao final da rua. Não a encontraria na sua saída da loja. Ele olhava para o chão e ela retomara o seu percurso, agora em direcção ao outro lado da avenida.
A menina dos cachos entraria logo depois noutra loja do outro lado. Tratava-se de uma pequena loja de chávenas, onde procurava um par, um par de chávenas bonito, rústico, característico do que é habitual encontrar num palacete, mas de traço simples. Enquanto as comprava ao balcão, o rapaz passava por essa mesma rua, não olhando senão para o chão, alheado das coisas que os outros faziam.
O rapaz virou à esquerda na esquina seguinte, descendo a rua mais calmamente. Parou para ver a montra de uma loja de roupa, roupa já de adulto. Afinal, a sua juventude aparente nas acções desta história provinha do sentimento e não da idade.
A menina dos cachos desceria entretanto a mesma rua sem o ver. A multidão cinzenta distrai-a. Cruzou-se com um amigo, e logo depois com outro. Vê meia dúzia de desconhecidos, no meio dos quais julga reconhecer alguém, mas não era o seu companheiro de carteira do infantário, não era o seu vizinho, não era ninguém que reconhecesse. Segue caminho sem reconhecer mais alguém. Volta a virar à esquerda para ver se costureira havia acabado o seu vestido.
O rapaz fazia entretanto o caminho inverso. Vai em direcção à avenida. Olha o sol que aponta para horas de retornar a casa. Está sem saudades de casa. Resolve então ir para um café a meio da avenida. Fica-se pela esplanada, aproveitando a brisa que passa.
Entretanto, a menina retoma também o caminho de retorno. Ao passar em frente da loja das chávenas, volta a olhar certificando-se da sua escolha e desce a avenida.
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[Na lógica dos enredos dos filmes europeus de há uns tempos, deixo-te a escolha do final desta história]

José Pedro Cadima

3 comentários:

Anónimo disse...

muito interessante,
afinal onde está a menina dos cachos?

Anónimo disse...

Pegando num enredo do típico filme europeu, acredito que a menina e o rapaz se encontram numa situação inesperada e se "confrontam" por fim.

Mas, tendo falado no cinema...e enquanto apreciadora, creio que faz falta a profundidade de um Bergman, de uma Varda, de um Resnais, Truffaut, Rossellini e outros tantos que marcaram o cinema europeu. Contudo, ainda se fazem belos filmes, e suspeito que essa menina dos cachos encaixava perfeitamente num filme à Jean Pierre-Jeunet.

Anónimo disse...

Outrora Jane Austen disse "Dou ás minhas personagens o que elas desejam". E acho que tal é aplicável aqui.
Por mais infortúnios que sofram, creio que deveriamos seguir a vontade do rapaz em encontrar a sua "menina dos cachos". Pois é sempre bom ler uma história com um final feliz...

JB