segunda-feira, julho 14, 2008

Minha Querida Helena

O que eu desconfio é que começas mesmo a gostar de mim e isso deixa-me preocupado. Muito poucas pessoas gostaram verdadeiramente de mim até hoje e, daí, talvez possas perceber quanto isso me soa estranho. Repara: não é que não ache que não tenha algumas qualidades e mereça um pouco de amor. A gente habitua-se a pensar as coisas de um certo modo e depois tem dificuldade em ajustar-se a outro contexto. Até porque já não vou para novo, como é bem evidente.
Não confundas estas confidências íntimas com "brainstorming". Isso é outra realidade. Aí são as questões "técnicas" que emergem. Trata-se de reflectir sobre o nosso quotidiano, confrontar avaliações. Não há grande espaço para emoções a este nível reservado. Aliás, aqui posso até dizer-te coisas que nunca seria capaz de transmitir-te olhos nos olhos, porque, conforme já tiveste oportunidade de constatar, há coisas, acontecimentos que me emocionam muito e que, por isso, dificilmente sou capaz de exteriorizar de viva voz. A escrita é, a esse nível, um instrumento muito mais impessoal, porque ambíguo. Aí pode-se dizer quase tudo, porque cada um fará a sua leitura, isto é, há sempre alguma ficção, ou pode admitir-se que a haja.

Numa tua anterior mensagem, mais profissional mas não menos denunciadora das emoções que te assaltam, davas-me os parabéns pelo trabalho de consultoria em que estive envolvido e que foi muito recentemente apresentado ao público, com alguma pompa e circunstância. É bonito que o tenhas feito e foram bonitos os elogios que a esse respeito me endereçaste. Fico muito contente que tenhas ficado com boa impressão do trabalho. Nota entretanto o seguinte:
i) o essencial do trabalho técnico não foi feito por mim; eu dei-lhe os contornos estruturais, coordenei a composição de algumas peças e participei activamente na componente de elaboração estratégica, incluindo a componente mais imediatamente política (de vender o projecto, à entidade que o contratou e à população);
ii) tratando-se de um projecto na área dos transportes, nem era óbvio o meu envolvimento; aliás, entrei nele contrariado e enfrentei muitos momentos de desmotivação no decurso da sua elaboração;
iii) para minha surpresa, os resultados foram surpreendentemente bons; falo da capacidade que tivemos de vender à CCDR-N uma nova concepção de organização do território e de uso da linha-férrea como peça estruturante desse projecto; finalmente,
iv) lendo os jornais, nomeadamente os de hoje, fico convencido que deixei de ser um técnico de planeamento para ser uma marca que é usada como garantia de qualidade de um projecto; isso é simpático, sem dúvida, mas deixa-me alguns embaraços, conforme imaginas (inclusive, porque isso ofusca o trabalho árduo de outros, que, algumas vezes, mereceria ter maior reconhecimento).
Sobre mudar o mundo, não digo nada, nesta ocasião.
Isto dito, perceberás o sentimento misto que me atravessa e a dificuldade que as tuas palavras simpáticas me provocam. Deixas-me com mais ansiedade ainda em relação ao nosso próximo encontro. Vou lidar com dificuldade com a inviabilidade de te abraçar. Desgraças!
Fico por aqui. Está na hora de me refugiar no trabalho, já que o não posso fazer nos teus braços.
Um xicoração,
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José Cadima

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