terça-feira, outubro 24, 2006

Guerra de culturas

O Forte estava cercado. Estavam em minoria de cinco para um. Os bárbaros avançavam e na torre de comando o comandante olhava tudo em redor, os acampamentos bárbaros, as suas maneiras, os seus costumes e, para com o seu conselheiro, comentou:
- Já reparaste como aqueles bárbaros agem? Podíamos ter-lhes ensinado tanta coisa.
- Nunca quereriam saber – respondeu o conselheiro.
- Disparate… Um dia, podiam ser gente como nós...
- Eles não quereriam ser gente.
- Disparate. Só dizes disparates. Foste para aqui mandado para dizer isso? Para dizer disparates?
- Apenas tenho a minha opinião. Desculpai-me, mas eu penso saber do que falo.
- Não achas que estes homens podiam ter sido ensinados a ser mais como nós? Ter o nosso nível, quem sabe… Viver num mundo mais sábio.
- Eles sentem-se contentes com a maneira como vivem. Não os podemos forçar.
- Mas já forçámos tantos.
- Eram fracos.
- Ficaram fortes.
- E agora cedem perante a força dos bárbaros?
- Podemos ser menos, mas cada homem nosso vale mais que mil bárbaros! Seremos sempre mais!
- Disparate!
- Não és, definitivamente, bom conselheiro. Nunca chegarás a nenhum lado. Pensas que é de homens como tu que o nosso povo precisa? Não consideras a superioridade da civilização sobre a barbárie?
- Chama a isto ser civilizado?
- Chamo. Porque não haveria de chamar?
- As próprias terras não eram nossas. Eram do povo bárbaro. Nós não lhas comprámos. Nós roubámo-las…
- Nós trouxemos-lhe a civilização!
- Acha?

Os bárbaros desencadeam o combate. As muralhas são atacadas. Voam flechas em todas as direcções. São milhares no ar, mas não é isso que espanta. O que espanta é como não chocam umas com as outras, em vez de chegar a um corpo em terra, perfurá-lo e deitar por terra um soldado, um guerreiro, um amigo, um lutador, um pai, um irmão, um filho.
- Avancem para a muralha oeste e desfaçam os batedores que se aproximam! – grita o comandante para os seus soldados.

Os bárbaros pegam fogo às estruturas. Por mais que os soldados matem, mais parecem aparecer. É como um humano coberto de milhões de formigas com fome, que se alimentam dele.

- Façam subir os arqueiros para a torre noroeste! Eles precisam de um sitio mais alto! Depressa! – grita o comandante a um dos seus de menor hierarquia.
- Ainda acha que vamos ganhar esta guerra? – pergunta o conselheiro.
- A civilização vencerá sobre a barbárie!
- Chama a isto civilização? Um povo que nunca está em paz? Que faz guerra para que um qualquer ganancioso chegue ao poder?
- Preferias lutar pela tua comida? Lutar por diversão?
- Cada um vê as coisas como quer.
- Vês de uma forma estranha.
- Apenas vejo o que é obvio.
- Obvio é que a civilização é superior à barbárie!
- Apenas uma palavra dita por eles tem mais lá dentro que um discurso dito por qualquer general ou senhor poderoso que está hoje a governar o nosso povo.
- Talvez, já são tantos… Os melhores estão aqui em combate!
- Então também vês o que vejo?!
- Vejo que os fracos estão a tomar conta do que construímos. É preciso mentes fracas. Os bons, os realmente bons estão aqui a lutar contra os bárbaros, porque o acham certo! Porque é o que os realmente bons fazem.
- Mas morrem e ficam os fracos. É isto civilização?
- É, e sinto pena destes bárbaros.

- Comandante! Comandante! Eles mandaram abaixo as muralhas do lado Sul. – grita um soldado.

- Não sentiria pena deles agora. – diz o conselheiro.
- Sinto pena porque preferem viver num mundo bárbaro, sem civismo, porcos, nojentos, violentos, sem qualquer perspectiva, nem mesmo a de ver que era melhor viverem numa sociedade como a nossa.

O conselheiro tirou um punhal das suas vestes e aproximou-se do comandante, passo a passo, enquanto o comandante gritava para os seus soldados:
– Para a frente com os batalhões! – clamava.
Chegando atrás dele, não pareceu intimidar-se, e quando o comandante se virou para o conselheiro ele enfiou-lhe o seu punhal pelo ventre a dentro.
- Sinto eu pena de vocês que perderam esta guerra apenas por não terem sido capazes de nos compreender.
/...
José Pedro Cadima (2006)

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