quinta-feira, outubro 26, 2006

Escritor

O escritor é, de todos, o maior drogado. Ele não inala, não ingere, não bebe, não fuma, não se injecta. Ele pensa e escreve.
Uns falam de alucinações, outros de cheiros, imagens, dores e, até, do nada. A adrenalina é imensa. Qualquer papel, máquina de escrever ou até computador é usado. Não interessa que seja apenas um guardanapo. O cérebro é de imediato consumido. Não há hipótese.
É pensador, mas não filosofo; se o fosse, era um filósofo drogado. São definitivamente os que mais consomem, uma, duas, três páginas, na maioria. Outros conseguem chegar até às catorze ou mais! Esses, é a toda a hora! Podem estar a dormir, quando a ideia chega acordam só para a apontar. Os viciados fazem dela uma história na noite em questão.
Quando a ideia é demasiado grande para ser toda escrita num só dia, fazem uma directa. Se for demasiado grande e ocupar uma semana, então, a cada noite, vão para a cama com a ideia atravessada, na expectativa da retocar e melhorar.
Se uns perdem dez minutos do seu dia nas drogas, o escritor é capaz de perder toda a sua vida. Parece recusar-se a viver depois de se dedicar a essa causa. Enquanto para os outros consumidores o aceitar que se está mal é o início, para um escritor é pior: isso apenas quererá dizer mais noites em claro, mais distância dos amigos, mais prazer em escrever, mais facilidade das ideias que brotam.
Quando se aprende algo, uma nova maneira de consumir as ideias, o vício torna-se insuportável para os outros. O escritor, por sua vez, quer mostrar que sabe, quer mostrar que escreve e parece afundar-se no vício cada vez mais.
Há horas que já devia estar a dormir. De facto, já estou até na cama, mas o vício foi mais forte.

José Pedro Cadima (2006)

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