domingo, novembro 12, 2006

A carícia

Ele e ela encontravam-se no mesmo quarto: o quarto dela. Ela tinha-o convidado para ir lá a casa ver onde passava grande parte da sua vida; onde ela se escondia, onde ela se refugiava e, assim, ficava em grande medida protegida de tudo que se passava lá fora.
Eles eram velhos conhecidos. Tinham andado nas mesmas escolas e, mais tarde, integrado a mesma turma. De facto, estiveram até sentados apenas a uns metros um do outro por um certo número de anos e, mesmo vendo-se todos os dias, não trocavam palavras. Certo dia aconteceu trocarem; aconteceu verem que estavam diferentes e que precisavam de alguém com quem conversar. Nessa ocasião, acabaram por conversar, brevemente. Ficaram amigos, até.
A amizade é uma daquelas coisas que não se pode definir com explicações simples. É um gesto de carinho para quem gostamos ou simpatizamos. É o convívio diário. É o acto de apoiar; é sentir falta de alguém; é fazer alguém rir-se, divertir-se, até. Eles tinham isso tudo. Até tinham mais, se calhar, amor.
Eles tinham-se amado. Tinham mostrado esse amor mas, depois, ficou tudo mais complicado e a relação desfez-se. Agora tentavam ser amigos, apenas. De certa maneira, ainda se amavam, mas tinha sido tão difícil chegar ao ponto a que chegaram que havia neles também o medo de que tudo voltasse a repetir-se.
Coitados, forçados a rejeitar o que sentiam, em vez de serem rejeitados um pelo outro. Dá-se valor aos sacrifícios das pessoas. Devia, talvez, dar-se mais valor a estas ... Ou, talvez, devêssemos aprender a dar valor a toda a gente. Mas parece impossível. Talvez o seja mesmo.
Ambos sabiam que era complicado aquele encontro. Ambos sabiam que ia ser um momento. Mas fingiram-se desentendidos do que realmente queriam. Vi-os até fechar a caixinha de desejos para se sentarem e conversarem apenas como coitados.
- E este é o meu quarto…
- É maior que o meu…
- Tem um ar confortável…
- Pois é, vieste quando eu estava quase a adormecer. Estou cheia de sono.
- Tu é que me mandaste vir aqui ter.
- Pois foi… Vou dormir! – deitou-se e sorriu.
Como ela é bela; como é espantosa. Pudesse uma deusa vê-la deitar-se e sentiria tanta inveja que a amaldiçoaria.
Ele olhou-a. Desfez-se em amor. Para além do que sentia agora, relembrou-se do que tinha sentido anteriormente; não nestes dias, mas na altura em que lho declarava abertamente. O pobre pasmava, parecia hipnotizado. “Diz-lhe o que sentes” - gritava eu aos seus ouvidos. Mas parecia não querer ouvir. Aproximou-se dela, encostou-se a ela, beijou-lhe o pescoço, deixou-se cair encostado a ela, abraçando-a, sentindo-a, como já tinha feito antes de lhe declarar o amor, mesmo que ela já o soubesse. “Não o queres?” - perguntava-lhe a ela, que nunca parecia responder aos seus apelos carinhosos.
De repente, sem dar aviso, ela circundou-o com seus braços e apertou-o contra si. Pensei estar a assistir ao retorno do amor deles. Não estava. Ela virou-se ao de leve para ele e ele para ela, parcialmente; noutra parte, ficou virado para o tecto, vendo e sonhando com as estrelas que lá estavam coladas. Rezava para que uma caísse e, ao ver a sua estrela cadente, pedir-lhe, talvez, que lhe atendesse um desejo ou, melhor: o desejo.
Ele acariciava-a. Ela fingia-se calma, serena da sua decisão de apenas serem amigos; fingia concordar que tudo aquilo seria o melhor. Ele mexia-lhe no cabelo, fazia-lhe como que festas, beijava-lhe o pescoço e o cabelo, admirava-a. Eu gritava ao ouvido de ambos. A ele dizia: “vais ter medo de avançar? Vais ter medo de lhe mostrar o que sentes?”. A ela aconselhava: “serás mais feliz se o tentares do que se ficares com medo”. Não valia a pena. Nenhum se mexia; nenhum avançava. Sentia-me inútil, confontado com o que estava a acontecer. “Sente o desejo” - murmurava, por fim, ao ouvido de cada um deles.
Ela levantou-se. Deu uma pequena volta pelo quarto; balbucionou algumas palavras, que não percebi. Há demasiado tensão naquele quarto. Os meus sentidos estão distorcidos e baralhados. Por isso, não percebo as palavras que me chegam, e não lhes dou importância.
Ele, depois de se ter inclinado um pouco para a ver e seguir atentamente a conversa dela, deitou-se e ficou de novo a pedir algo às estrelas. Ela deitou-se de novo na cama e pôs a cabeça sobre o seu peito. Riu-se de algo que ele disse, algo pensado, porque se saísse tudo o que ele queria dizer não teria saído um sorriso mas sim um choro, dos dois.
Ele tocou-a; acariciou-a levemente. Sentiu amá-la intensamente, porque amar nunca é demais. Concentrou-se em senti-la; pareceu-lhe não haver outro prazer assim. “Vai em frente rapaz. Tens que lutar…”. Ela levantou-se novamente. Queria mostrar-lhe algo; algo não sentimental, apenas uma futilidade material. Ele interessou-se apenas por ela se interessar. Para ele passou a ser uma das coisas mais importantes de todo o universo, apesar de ser a ela que ele queria e não ao objecto. “Mostra-lhe o que tens dentro de ti.” – implorei-lhe.
Voltaram para a cama. Deitou-se ele, e ela a seu lado. Deitou-se de costas para cima e ele acarinhou a sua espinha e, devagar, desceu, meteu as mãos por dentro da camisola e foi acariciando as suas costas. Quando ela se virou de costas para ele e, também, a ele se encostou, suas mãos acariciaram sua anca e sua barriga.
O toque, o simples toque estava a remexê-lo por dentro. A sua barriga sentia cócegas, como se borboletas o roçassem. O seu corpo sentia arrepios ao tocar-lhe. Ela era uma doença para ele. As voltas da barriga, os apertos no peito, tal como quando algo estava mal, as tonturas de quando estava confuso, era o que experimentava naquela altura. O toque, o simples toque estava a fazê-lo mais feliz do que algum dia tinham feito os seus beijos.
A felicidade pode ou não derivar do amor. Ele não assistia à felicidade, apenas se sentia bem; sentia-se meio feliz mas, quando o momento acabasse, não o seria mais. Sentiria vontade de ter feito mais, de ter ido mais longe. “Avança, senão vais arrepender-te” - gritei-lhe, a ele, que já tinha ido tão longe.
Ela deixava-se estar, deixava-o acarinhá-la, deixava-o mostrar o seu amor, não por palavras ou declarações, mas apenas pelo simples toque. De certa forma, até parecia que ela estava a ser cobarde ou, mesmo, que ela o estava a gozar; deixava-o ir tão longe e, agora, não fazia nada; não parecia querer que fizesse.
“Age… por favor” - implorei-lhe. Ela tinha que agir…“Rapaz, filho, irmão, Romeu, seja qual for o título que te der, vais finalmente actuar? Vais dizer-lhe que a amas? Ou só a vais continuar a amar, em silêncio?”. “ Rapariga, moça, deusa de Romeu, Julieta…, vais algum dia voltar para os braços de teu Romeu? Vais sujeitá-lo a amar-te tanto sem lho dizer? Ele bem to mostra mas tu não queres ver. E tens medo de ouvir… Saboreia-o, pelo menos, que na tua vida poucas vezes irás ter quem te dedique tanto amor.”

José Pedro Cadima (2006)

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