Desci para me despedir. Cheguei contigo à rua e olhei-te. Ias-te embora; ias para longe de mim. Os meus braços circundaram-te e puxaram-te para mim. A minha cabeça inclinou-se e meus lábios foram ao encontro aos teus. Belo este momento; bela a despedida.
Acreditamos que apenas na morte temos milhões de momentos da nossa vida a passar à nossa frente. Acreditamos, realmente, que isso acontece quando morremos? Poderá ser apenas um aproximar da morte que depois negamos… Será? Será que cada momento que vemos nessa hora é mais um momento que iremos reviver? Ou morre de facto uma parte da nossa vida? Uma parte nós? Se morremos… Quantas vezes se pode morrer numa vida?
Se morri, não era a primeira vez, já me tinham passado inúmeras imagens pela frente em questão de segundos em múltiplas outras ocasiões. Já me tinham passado tantas que até desacreditava que fossem minhas e, em razão dessa repetição, começava a acreditar, até, que a vida era nada mais nada menos que uma repetição por ciclos, isto é, que tudo, tudo voltava a acontecer, e a cada ciclo juntava-se algo novo.
Morri uma primeira vez num momento em que te vi com outro da mesma espécie; com o mesmo olhar; com o mesmo sexo que o meu, mas que não era eu. Vi cada momento que te tinha cortejado, cada um mais infinitamente pequeno que o outro, cada um mais infinitamente inacreditável. Até com o meu respirar eu te parecia cortejar.
Morri uma segunda quando soube, pelas tuas próprias palavras, que, um dia, tiveste a coragem de te entregar não a mim mas a outro. Nessa ocasião, passaram à minha frente milhares de milhões de porquês, milhares de milhões de lamentações, milhares e milhões de choros meus.
Morri cada vez que me rejeitaste, cada vez que o teu olhar me reprovou, cada vez que me viraste as costas e, sem perceberes que, apesar de tudo isso, te amava, fugiste. Passaram biliões de imagens, triliões de momentos, quatriliões de ideias que foram minhas, tantas que nelas me reconheci.
Agora, voltava para trás. Tu seguias em frente, determinada em ir para longe. Sei que não era pelo desejo de te veres livre de mim. Tinhas algo a fazer, mas teria que ser hoje? Teria que ser no momento que eu estava mais embalado no amor? Pois parecia que sim. Teria que me embalar no amor que deixei hoje, a chorar por mais, noutra altura.
Fechei o portão atrás de mim e enquanto tu te distanciavas eu decidi parar e encostar-me ao portão. Ainda te via. Foi essa a última vez que me senti morrer. As imagens começaram a passar, sentia-te minha mais do que tudo, sentia-te tanto. As imagens eram de nós os dois, abraçados, aos beijos, a trocar um monte de carícias. E se já tinha tido momentos destes, momentos em que vejo muitas imagens, em que relembro muitos momentos, este tinha ultrapassado todos e duplicava, triplicava, quadruplicava, todo esse número de momentos que tinha visto da última vez.
Os teus beijos eram sinceros, os teus olhos fechavam-se, a tua boca abria-se lentamente, a tua língua molhava os meus lábios, os teus braços agarravam o meu cabelo. Eu, eu limitava-me a imitar, a tentar ser tão sincero quanto tu, apenas porque acreditava que, se os teus beijos eram tão bons por serem sinceros, então eu seria mais sincero ainda por retribuir todo o carinho que recebia.
O teu corpo era como um altar, aquele local belo a que todos desejariam chegar. Vejo momentos em que lhe chego, sinto-os até. Empurro mais o portão para trás. Ele não mexe. Já está fechado. Vejo-te ao longe, a distanciares-te ainda mais. Na verdade, estarás apenas a alguns passos de distância. Eu é que sinto, vejo, saboreio, oiço, tudo tão rápido que parece que passou tanto tempo.
Se a morte é ver todas os momentos da nossa vida a passar à nossa frente, então o que é o ouvir cada momento? O saborear, o sentir…. Atrever-me-ia, talvez, a pensar que estaria a renascer. Atrever-me-ia, ainda, a admitir que nem Cristo sentiu tanto ao renascer.
Que sentia eu? Que via eu? Que saboreava eu? Que tocava eu? Porque sim, eu tocava, eu parecia tocar-te, eu pedia que me deixasses tocar-te. Era o relembrar integral de cada momento da minha vida, de cada momento em que a partilhei contigo.
Empurrava o portão, ele parecia ganhar vida e responder na mesma moeda. Parecia mais forte e resistente do que o costume. Eu fazia mais força e com mais força parecia ele resistir. Tu? Tu ias-te afastando, ao de leve, com um pé à frente do outro, a mexeres-te exactamente como uma rapariga se deve mexer, mas de uma maneira que fazia com que tu fosses a única que realmente eu apreciava ver. Afastavas-te com determinação e eu, encostado ao portão, ainda só tinha visto metade das imagens, saboreado metade dos momentos, ouvido metade das palavras.
A rua era longa, o teu percurso ainda era grande, mas não maior do que a quantidade de imagens que eu tinha pela frente. Quem me visse, diria coisas perversas sobre mim pela forma como te olhava ou faria pior: dar-me-ia como apaixonado o suficiente para cometer loucura. Todos ficariam com a ideia que te observava, que te contemplava; e talvez até o fizesse, mas era nos momentos em que a minha cabeça relembrava e não neste em que te via ir embora. Relembrar não. Reviver, porque quando algo é tão intenso uma lembrança passa a ser uma vida.
A razão pela qual podemos morrer tantas vezes é porque revivemos tanto que, aos poucos, alguns sentidos, de alguma vida, acabam por morrer, e assim morre uma vida para nos deixar com aquela que realmente temos. Porque é feio chorar por algo que já não faz sentido. Porque é horrível lamentarmo-nos por momentos já substituídos. Porque, depois de muita asneira, depois de muitos erros, acabamos por crescer e ser algo mais que a vida que temos.
É certo que neste momento passo de novo as cenas em reflexão. É verdade que em muitos momentos não soube amar-te. Mais verídico é ainda que, mesmo naquelas ocasiões em que soube, sinto que podia ter feito mais e podia, a cada momento que revivo, esforçar-me mais. Aliás, de cada vez vou mais além daquilo que fui da última e, mesmo que não o notes, eu sei que aquele beijo, aquele toque, foi mais verdadeiro…
Estás a três passos de me fazer perder-te de vista. Três passos de realmente estares longe de mim. Sinto o sabor dos teus lábios, começo a sentir a palavra “finalmente” e vejo-me encostado a ti a dar-te aquele beijo de, mais do que tudo, saudade…
Dois passos… As cenas passam tão rápido que não as consigo acompanhar. Sinto-me numa orgia de sentimentos, visões, palavras. Os meus lábios distanciam-se dos teus trazendo um sorriso. Dizes que te vais embora. Amuo; faço-te a vontade; dou-te outro beijo.
Último passo… Desci para me despedir. Cheguei contigo à rua e olhei-te. Ias-te embora, ias para longe de mim. Os meus braços circundaram-te e puxaram-te para mim. A minha cabeça inclinou-se e meus lábios foram ao encontro dos teus. Belo este momento, bela a despedida.
Morri. Renasci. Completei mais um ciclo.
Desapareceste da minha vista naquela maldita curva.
Acreditamos que apenas na morte temos milhões de momentos da nossa vida a passar à nossa frente. Acreditamos, realmente, que isso acontece quando morremos? Poderá ser apenas um aproximar da morte que depois negamos… Será? Será que cada momento que vemos nessa hora é mais um momento que iremos reviver? Ou morre de facto uma parte da nossa vida? Uma parte nós? Se morremos… Quantas vezes se pode morrer numa vida?
Se morri, não era a primeira vez, já me tinham passado inúmeras imagens pela frente em questão de segundos em múltiplas outras ocasiões. Já me tinham passado tantas que até desacreditava que fossem minhas e, em razão dessa repetição, começava a acreditar, até, que a vida era nada mais nada menos que uma repetição por ciclos, isto é, que tudo, tudo voltava a acontecer, e a cada ciclo juntava-se algo novo.
Morri uma primeira vez num momento em que te vi com outro da mesma espécie; com o mesmo olhar; com o mesmo sexo que o meu, mas que não era eu. Vi cada momento que te tinha cortejado, cada um mais infinitamente pequeno que o outro, cada um mais infinitamente inacreditável. Até com o meu respirar eu te parecia cortejar.
Morri uma segunda quando soube, pelas tuas próprias palavras, que, um dia, tiveste a coragem de te entregar não a mim mas a outro. Nessa ocasião, passaram à minha frente milhares de milhões de porquês, milhares de milhões de lamentações, milhares e milhões de choros meus.
Morri cada vez que me rejeitaste, cada vez que o teu olhar me reprovou, cada vez que me viraste as costas e, sem perceberes que, apesar de tudo isso, te amava, fugiste. Passaram biliões de imagens, triliões de momentos, quatriliões de ideias que foram minhas, tantas que nelas me reconheci.
Agora, voltava para trás. Tu seguias em frente, determinada em ir para longe. Sei que não era pelo desejo de te veres livre de mim. Tinhas algo a fazer, mas teria que ser hoje? Teria que ser no momento que eu estava mais embalado no amor? Pois parecia que sim. Teria que me embalar no amor que deixei hoje, a chorar por mais, noutra altura.
Fechei o portão atrás de mim e enquanto tu te distanciavas eu decidi parar e encostar-me ao portão. Ainda te via. Foi essa a última vez que me senti morrer. As imagens começaram a passar, sentia-te minha mais do que tudo, sentia-te tanto. As imagens eram de nós os dois, abraçados, aos beijos, a trocar um monte de carícias. E se já tinha tido momentos destes, momentos em que vejo muitas imagens, em que relembro muitos momentos, este tinha ultrapassado todos e duplicava, triplicava, quadruplicava, todo esse número de momentos que tinha visto da última vez.
Os teus beijos eram sinceros, os teus olhos fechavam-se, a tua boca abria-se lentamente, a tua língua molhava os meus lábios, os teus braços agarravam o meu cabelo. Eu, eu limitava-me a imitar, a tentar ser tão sincero quanto tu, apenas porque acreditava que, se os teus beijos eram tão bons por serem sinceros, então eu seria mais sincero ainda por retribuir todo o carinho que recebia.
O teu corpo era como um altar, aquele local belo a que todos desejariam chegar. Vejo momentos em que lhe chego, sinto-os até. Empurro mais o portão para trás. Ele não mexe. Já está fechado. Vejo-te ao longe, a distanciares-te ainda mais. Na verdade, estarás apenas a alguns passos de distância. Eu é que sinto, vejo, saboreio, oiço, tudo tão rápido que parece que passou tanto tempo.
Se a morte é ver todas os momentos da nossa vida a passar à nossa frente, então o que é o ouvir cada momento? O saborear, o sentir…. Atrever-me-ia, talvez, a pensar que estaria a renascer. Atrever-me-ia, ainda, a admitir que nem Cristo sentiu tanto ao renascer.
Que sentia eu? Que via eu? Que saboreava eu? Que tocava eu? Porque sim, eu tocava, eu parecia tocar-te, eu pedia que me deixasses tocar-te. Era o relembrar integral de cada momento da minha vida, de cada momento em que a partilhei contigo.
Empurrava o portão, ele parecia ganhar vida e responder na mesma moeda. Parecia mais forte e resistente do que o costume. Eu fazia mais força e com mais força parecia ele resistir. Tu? Tu ias-te afastando, ao de leve, com um pé à frente do outro, a mexeres-te exactamente como uma rapariga se deve mexer, mas de uma maneira que fazia com que tu fosses a única que realmente eu apreciava ver. Afastavas-te com determinação e eu, encostado ao portão, ainda só tinha visto metade das imagens, saboreado metade dos momentos, ouvido metade das palavras.
A rua era longa, o teu percurso ainda era grande, mas não maior do que a quantidade de imagens que eu tinha pela frente. Quem me visse, diria coisas perversas sobre mim pela forma como te olhava ou faria pior: dar-me-ia como apaixonado o suficiente para cometer loucura. Todos ficariam com a ideia que te observava, que te contemplava; e talvez até o fizesse, mas era nos momentos em que a minha cabeça relembrava e não neste em que te via ir embora. Relembrar não. Reviver, porque quando algo é tão intenso uma lembrança passa a ser uma vida.
A razão pela qual podemos morrer tantas vezes é porque revivemos tanto que, aos poucos, alguns sentidos, de alguma vida, acabam por morrer, e assim morre uma vida para nos deixar com aquela que realmente temos. Porque é feio chorar por algo que já não faz sentido. Porque é horrível lamentarmo-nos por momentos já substituídos. Porque, depois de muita asneira, depois de muitos erros, acabamos por crescer e ser algo mais que a vida que temos.
É certo que neste momento passo de novo as cenas em reflexão. É verdade que em muitos momentos não soube amar-te. Mais verídico é ainda que, mesmo naquelas ocasiões em que soube, sinto que podia ter feito mais e podia, a cada momento que revivo, esforçar-me mais. Aliás, de cada vez vou mais além daquilo que fui da última e, mesmo que não o notes, eu sei que aquele beijo, aquele toque, foi mais verdadeiro…
Estás a três passos de me fazer perder-te de vista. Três passos de realmente estares longe de mim. Sinto o sabor dos teus lábios, começo a sentir a palavra “finalmente” e vejo-me encostado a ti a dar-te aquele beijo de, mais do que tudo, saudade…
Dois passos… As cenas passam tão rápido que não as consigo acompanhar. Sinto-me numa orgia de sentimentos, visões, palavras. Os meus lábios distanciam-se dos teus trazendo um sorriso. Dizes que te vais embora. Amuo; faço-te a vontade; dou-te outro beijo.
Último passo… Desci para me despedir. Cheguei contigo à rua e olhei-te. Ias-te embora, ias para longe de mim. Os meus braços circundaram-te e puxaram-te para mim. A minha cabeça inclinou-se e meus lábios foram ao encontro dos teus. Belo este momento, bela a despedida.
Morri. Renasci. Completei mais um ciclo.
Desapareceste da minha vista naquela maldita curva.
José Pedro Cadima (2006)
1 comentário:
sem duvida um dos teus melhores textos.
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