segunda-feira, março 31, 2008

Carregar com palavras

Palavras ditas uma vez magoam para sempre.
É estranho e forte o poder das palavras.
Por isso, amiúde, a sabedoria está em ficar calado.

Produzida a ferida, não há como retroceder.
Permanecer calado pode, mesmo então, ser menos danoso
que voltar a fazer uso da palavra.
Falar, enterra-nos.

Levando ou atirando com palavras, resta-nos depois carregá-las.
É como uma cruz que se carrega pela vida.
É responsabilidade de cada um pôr-se na pele dos outros.
A humanidade de cada indivíduo revela-se também nisso.

José Pedro Cadima

sexta-feira, março 28, 2008

Querer mais

Há qualquer coisa
que não me deixa descansar.
Garanto-vos ver demónios
passearem-se por meus azares
e seus servos
por linhas do meu destino.
Será por eu querer demais?
É erro ter demais, sei-o.
Sei, também, que mais cansaço
traz mais aflição,
mas eu só corro por ti!

José Pedro Cadima

terça-feira, março 25, 2008

Indivíduo

Não peças a César
que te dê Roma
sendo tu exército!

Larga a lâmina
que essa orelha cortada
não te fará original!

Pousa a cruz!
Não podes ser mártir
se a causa for apenas tua.

José Pedro Cadima

domingo, março 23, 2008

Minha Querida Helena

Fazendo-me falta todos os dias, há dias em que sinto mais a tua falta. Hoje é um desses dias. Será porque lá fora corre um vento gelado? Ou será, antes, porque nos dois dias antecedentes voltei, muito brevemente, aos lugares da minha infância e às memórias de dias menos agrestes, misturadas com as de outros que não gosto de recordar? Interrogo-me e não encontro resposta alguma que não seja que me fazes falta hoje, particularmente hoje, meu amor.
De regresso a memórias e lugares de infância, já aí senti a tua ausência, se bem que a tua memória só longinquamente ecoe por essas paragens. Desejei ter-te lá comigo. Desejei que me ajudasses a reencontrar-me com o lado feliz desse reencontro. Talvez desse modo fosse capaz de deixar de estar por lá de fugida, como vem acontecendo há muitos anos. Porque será que esses lugares me atraem e repelem, simultaneamente? Será porque me sinto aí sem ti? Mas, e aqui, sem ti, como me devo sentir? Queres dizer-mo?
De volta a esta terra, agora também minha, julguei ficar mais próximo de ti. Pura ilusão: quanto mar a separar-nos, quanto vento gelado a tolher-nos os passos. Logo hoje, meu amor, em que só o calor do teu corpo poderia trazer-me algum conforto.
Olho em volta, tento descortinar por entre os raios de sol que rasgam o horizonte o calor que os raios do sol costumam trazer e a minha mente logo foge para ti, ansiando calor, procurando conforto. Olho em volto, vejo sinais teus em cada objecto que me rodeia, mas de ti nem sinal, nem aceno. Por onde andas tu, querida Helena, neste dia tão agreste. Sentirás tu o mesmo desconforto que eu sinto? Correste tu para mim com a mesma energia com que eu corri para ti, de modo a vencer a resistência deste vento de Inverno, quando a Primavera já se fez anunciar? Vou crer que sim. Vou crer que foi este vento que foi mais forte que a urgência que eu tinha que nos apertássemos nos braços.
Hoje, este vento gelado venceu. Amanhã preciso que vençam outras forças da natureza, sob pena que se extinga a réstia de energia que alimenta este meu corpo enregelado, trémulo, carente de ti.

José Cadima

sábado, março 22, 2008

Tempos glaciares

O cansaço enfraquece-me,
empurrando-me para o canto
mais sombrio da minha alma.
A insipidez do local abafa-me.
Já passaram por aqui desejos e sonhos deliciosos,
mas inverosímeis.
Agora, não são senão memórias,
imensos espaços gelados,
glaciares, diria.
Saudade! Arrependimento!
Sim, não os deveria ter deixado gelar!
Sim, acode-me a saudade de tempos menos sombrios,
que me culpo de não ter sabido preservar.

José Pedro Cadima

terça-feira, março 18, 2008

Escondido num novelo de lã

Num novelo de lã me quero esconder,
quietinho, aconchegado, a salvo;
a salvo do que vai lá fora,
a salvo do que ficar fora do meu novelo de lã.
Deixem-me procurar um lugar
onde possa permanecer recolhido,
longe da impiedosa lei
que, nos sonhos, traz a luz.

A opressão ataca os pobres
que querem sonhar,
encurrala-os em becos sem saída,
enche-nos a vida de medos.
Pressinto longe o meu novelo de lã.
Quem me dera tê-lo mais perto,
ali, ao alcance de uma mão.

José Pedro Cadima

sábado, março 15, 2008

Histórias de amor

A cada história que conto,
"Romeu e Julieta" lhe podia chamar.
A forma, o tempo,
as personagens mudam.
O tema é sempre o mesmo:
um amor interdito.

José Pedro Cadima

quinta-feira, março 13, 2008

Carisma

Não sou, de certo, uma figura das mais carismáticas.
Falta-me o “charme” que berra ao mundo.
Ninguém se recordará da minha cara,
salvo quem a reconhecer nas minhas palavras.

José Pedro Cadima

terça-feira, março 11, 2008

Meu achado

Ai achado!
Meu coração-agulha, qual bússola,
aponta para ti.

Um traço teu
leva-me a amar-te,
à semelhança do modo como a agulha
descobre o seu Norte.

José Pedro Cadima

sábado, março 08, 2008

Minha Querida Helena

Em tempo de confidências, quero falar-te hoje do sentimento que tive na passada semana quando, por feliz acaso, passei a noite em tua casa. O acaso a que me refiro releva dos nossos desencontros recentes, que verbalizei em mensagens anteriores.
Não me deterei sobre a tua receptividade em relação a gestos de carinho matinal; não me alongarei sobre a estranheza que para mim é a gestão que fazes das tuas horas nocturnas, onde parece não haver tempo para o sono – presumo que aches que outro tanto seja válido para os demais ou, pelo menos, para mim; não comentarei a quantidade de comida que sempre pões à minha frente, nem tão pouco a surpresa que sempre enuncias pelo pouco que – dizes tu – eu como. Tal qual digo, pretendo apenas dar-te notícia do sentimento que me invadiu, em tua casa, enquanto aguardava que acabasses de fazer o jantar, primeiro, ou te libertasses das arrumações da cozinha, depois.
Concretizando, digo-te, minha querida, que me vi na condição de um objecto que preenche a casa. Não digo um objecto mais, porque poderia parecer-te ofensivo, mas, em todo o caso, uma peça que ocupa um espaço, porventura preenche um vazio. Curiosamente, no teu dizer, alguém que se move sem ruído e que, por isso, ocasionalmente te surpreende e te assusta. Repara, o meu objectivo era estar contigo – sublinho: estar contigo – mas a ti satisfez-te ter-me no sofá da tua sala, enquanto tu te movimentavas pela cozinha, pela casa; satisfez-te saber-me deitado na tua cama, perdido de sono, enquanto te ocupavas da cozinha, da casa de banho, e do mais que julgaste ajustado para aquela hora tardia.
Em abono da verdade, devo dizer-te que não foi a primeira vez que pensei isto que agora te enuncio. Foi, no entanto, a primeira vez que o senti na sua expressão vivida, na exacta hora. Não to disse na ocasião porque não sabia como reagirias ou, melhor, receei que reagisses mal, e isso era a derradeira coisa que eu desejaria. Digo-to agora, num apelo à sinceridade, na expectativa de que entendas a bondade do que te transmito e me perdoes, nessa mesma medida
Seguramente, te surpreenderei com esta minha confissão. Tu sabes, no entanto, que és o meu único refúgio, pelo que não havia outrem a quem segredar este pensamento íntimo. É também isso que faz a diferença entre ter ou não ter alguém... meu amor.

Braga, 19 de Julho de 2004

José Cadima

quarta-feira, março 05, 2008

Teus caracóis

Caracóis. Caracóis.
Que lindos eram os teus caracóis!
Faziam lembrar um conto de fadas,
onde cavaleiros trepavam por eles
para atingir a tua janela.

Por onde subir
senão mesmo pelos caracóis do teu lindo cabelo?
Por onde subir,
para o céu alcançar,
senão pelos fios enrolados do teu cabelo?

José Pedro Cadima

segunda-feira, março 03, 2008

Muitos…

Muitas palavras que não chegaram a sê-lo.
Muitas ideias que não chegaram a realizações.
Muito amor que não encontrou
um coração aberto para o receber.
Muitas promessas de amor por cumprir
e outras que ficaram por fazer.
Muitos corações despedaçados.
Muitas amizades destruídas.
Muitos … Muitas coisas tristes para contar.
Mais seriam se ousasse falar
dos muitos medos que sinto!

José Pedro Cadima

sábado, março 01, 2008

“As meias e as pernas – I”

“Aos meus leitores mais atentos não surpreenderá que lhes diga que escrevi esta crónica na sala de espera de um aeroporto da Europa, nem talvez lhes estranhará que lhes deixe dito que o fiz como forma de usar o tempo (não sei se diga, de passar o tempo) de espera do avião que me deveria trazer de volta a Portugal. Já estou menos certo que se surpreendam se vos disser que me ocorreu fazê-lo a pretexto da leitura de um artigo de um semanário nacional em que o tema era estar ou não na moda o uso de meias brancas.
Para quem não tenha lido a prosa em questão, deixo dito que o articulista se referia ao uso de meias brancas masculinas (se é que as meias têm sexo) e sugeria que era tempo desta cor voltar a estar na moda, por forma a poder dar uso à colecção que o avô lhe foi oferecendo, ao longo dos anos. De uma leitura um pouco mais subtil, poderia o leitor tirar do artigo a sugestão que a moda é feita pelos fazedores de opinião, costureiros de muitos ofícios, ou poderia concluir que o seu autor passava por uma crise de imaginação, o que era, seguramente, o mais verosímil. Aliás, valha a verdade que se assinale que o articulista em causa não fazia qualquer esforço para que quem quer que fosse concluísse de outro modo.
Foi precisamente este último aspecto que mais me chamou a atenção pelo que traduz de honestidade intelectual e pelo que ela revela de personalidade da personagem, porque, concordem comigo, não haverá muitos que se disponham a admitir publicamente que atravessam um momento de crise (crise de imaginação, digo) e, simultaneamente, por dever de ofício e respeito de obrigações contratadas, se disponham ao esforço de persistir no seu trabalho. Louvo-lhe isso e louvo-lhe, ainda, a felicidade da e3scolha: as meias masculinas, um artefacto tão nobre e, eventualmente, tão descurado. Muito menor arrojo seria reter as meias femininas, tema que, para alem de muito badalado, deixaria nos seus leitores a dúvida sobre se seriam as meias ou as pernas que o articulista pretenderia relevar.
Por mim, congratulo-me por não ter sido jamais atingido por crise semelhante, já que receio bem não ter a arte e o saber que aqui exalto para a ultrapassar com a elegância necessária.”

J. C.

(reprodução integral de crónica do autor identificado publicada no jornal Notícias do Minho de 96/10/18, em coluna regular genericamente intitulada “Crónicas de Maldizer”)