quarta-feira, outubro 31, 2007

Tens medo de sair à rua?

Lá fora chovia e trovejava desmesuradamente. Uma jovem atada e amordaçada tremia numa pequena arrecadação escura e fria. Pouco conseguia fazer senão respirar e imaginar o seu destino doloroso. A arrecadação tinha uma forma rectangular que, talvez felizmente, a jovem, de nome Sílvia, não conseguia ver. As paredes estavam manchadas de sangue e na porta estavam escritos os nomes de vários infelizes.

Do outro lado da porta, completamente livre, estava um homem que se divertia com a sua faca: desde pequeno que abria ratos ao meio e, desde há pouco tempo, que o fazia com pessoas…

Todas as quartas, quintas, e sextas, a Sílvia saía à noite e ele olhava-a; traçava o padrão e a rotina. Ambicionava apanhá-la e, quando o fizesse, mostrar-lhe-ia que não devia sair à rua só.

Na arrecadação, a Sílvia tremia. Por vezes, sentia os peludos e gordos ratos e ratazanas que comiam migalhas deixadas em volta dos seus pés. O coração dela disparava e o suor escorria-lhe pelo corpo. Os ruídos metálicos arrepiam-na na espinha e os pêlos eriçavam-se-lhe instintivamente. Havia dezenas de ratos que guincham em seu redor, com as caudas pegajosas a roçarem-lhe os tornozelos. Ela tentava gritar, sem sucesso: saiam-lhe sons miseravelmente abafados pela mordaça.

Devagar e com extrema perícia, o vizinho predador pegava num rato e abria-o. Sacodia o animal de maneira a que as tripas cedessem e, com a gravidade, tudo se fundia numa mistela esmagada no chão. Dava-lhe prazer fazer aquilo, mas não tanto como lhe dava abrir alguém a meio, enquanto esse alguém respirava, e, de seguida, deixar os ratos alimentarem-se dele.

A Sílvia saiu pelas 23 horas, levando uma mini-saia e estava decidida a percorrer o seu caminho habitual, mas o predador gostou dela. Fazia-lhe lembrar a mãe, que à noite também saía, deixando-o sozinho nos piores dos pesadelos. Devagar, tal como aos ratos, o vizinho apanhou Sílvia a dez metros da saída de casa, numa curva onde aquela hora ninguém costumava passar e levou-a para a sua arrecadação. Descalçou-a e amordaçou-a, deixando-a com os ratos famintos - as migalhas eram só para impedir que os ratos a mordessem.

Largou o resto do rato no chão e enquanto abria a porta imaginava a pobre Sílvia a urinar pernas abaixo, tentando libertar-se das cordas, ao ouvir o ranger dos seus passos.

Não aconteceu! Fez-se meia-noite e, ao abrir a porta, deparou-se com Sílvia, de frente para a porta, enforcada nas próprias cordas que outrora a amarravam. O predador urinou pernas abaixo e, do fundo do corredor, escondido nas sombras onde o luar não conseguia chegar, ouviu uma voz:

- Não tens medo de ficar sozinho em casa?

José Pedro Cadima

domingo, outubro 28, 2007

“Ainda há esperança”

“Há algum tempo, um colaborador do «Notícias do Minho» despedia-se dos seus leitores alegando falta de objecto de análise ou, melhor, de combate. Na ocasião, cheguei a considerar seguir-lhe o exemplo, não tanto porque as nossas crónicas convergissem no objecto mas, antes, porque este apontamento jornalístico (Crónicas de Maldizer) se aprestava para fazer um ano.
O simbolismo da data tornava-a particularmente indicada para uma despedida em beleza. Havia, no entanto, o inconveniente da coincidência a que atrás me reporto e, para minha desgraça, o dito ex-colaborador tinha tomado a iniciativa. Por outro lado, se o momento de celebração de um ano de maldizer, salvo seja, era uma boa ocasião para procurar novos rumos, muito melhor oportunidade teria sido a comemoração do primeiro mês ou dos primeiros quinze dias. Aliás, se bem que não me recorde quem seja o autor do dito, comungo em grande parte da ideia que «não há como a primeira vez» (ou será «não há amor como o primeiro»?).
Assim sucedendo, qualquer ocasião posterior era tão boa como qualquer outra para dizer, portuguesmente, «bye, bye». Chateava-me, entretanto, a perspectiva que alguém pudesse tirar gozo pessoal do termo das minhas crónicas: conforme deixei expresso algures, os meus escritos sempre tiveram por propósito primeiro o prazer que tiro deles e só a ideia de alguém retirar daí mais gozo que eu era bastante para incomodar-me.
Tomada a decisão de permanecer no activo, permaneceu a eterna dificuldade de encontrar assunto. A verdade é que, apeado Cavaco, a análise política e jornalística ficaram, apesar de tudo, mais pobres. Realmente, há que convir que não é fácil imitar no disparate, na arrogância, na falta de bom senso, os protagonistas maiores da vida política da última década.
Se a ocasião era já de pasmaceira e escasseavam os motivos para a análise e para a crítica social até Outubro pp., depois dessa data então entrámos em período de crise aguda, e há o receio que à crónica de opinião volte a não sobrar outro tema que não seja o percalço da Sra. Etelvina no outro dia em que foi ao mercado comprar cebolas (ou tomates, já não tenho bem presente).
Resta-me, todavia, a expectativa que o Eng. Guterres e os seus doutos ministros rapidamente se ajustem às cadeiras do poder e, na boa tradição dos que os precederam, encetem a senda da asneira. Por exemplos passados, acredito que há razão para manter acesa a esperança. Muito me desiludiria o governo do Eng. Guterres se isso não viesse a suceder a curto-prazo.”

J.C.

(reprodução integral de crónica do autor identificado publicada no jornal Notícias do Minho de 95/11/25, em coluna regular genericamente intitulada “Crónicas de Maldizer”)

quinta-feira, outubro 25, 2007

Minha Querida Helena

Por vezes, é tão difícil falar contigo. Há ocasiões em que tenho a sensação que só te escutas a ti. Digo-o não no sentido figurado - de que o teu pensamento prevaleça sobre o de outrem (o meu) - mas no exacto sentido em que, pura e simplesmente, ignoras o que te procuro transmitir, e fico a repetir palavras, a exprimir emoções crescentemente irritado e tentando controlar a vontade de bater com o telefone. Nessas ocasiões, concluo sempre, e algumas vezes digo-to, que não devia ter telefonado. O problema é que não sou capaz de antecipar quando não te devo ligar e, uma vez entrados nessa conversa de surdos, é tarde de mais para recuar, se bem que o devêssemos fazer. Cortando, estabelecendo a ligação a partir do início, a possibilidade de sucesso da comunicação é inquestionavelmente outra.
Curiosamente, isso acontece mais em ocasiões em que procuro exprimir-te a preocupação que tenho com a tua saúde ou com a tua estética, o que configura a ideia, que já te tenho repetido, de que essas são peças da tua estratégia de auto-flagelação, sendo certo que, magoando-te, me magoas também, embora as consequências desse gesto sejam bem mais gravosas para ti.
Quando finalmente consigo que me ouças, dizes-me amiúde que sou eu que sou incapaz de julgar a tua ordem das prioridades: a prioridade de alguém que chega e que espera atenção sobre a prioridade de agendar uma consulta médica; a prioridade de arrumar a sala sobre a prioridade de realizar um tratamento no hospital; a antecedência absoluta de uma visita ao café da D. Felismina, de um cigarro, sobre a visita ao cabeleireiro.
Não entendes tu que essa tua ordem de prioridades me confunda e me contraria? Porque não aceitas tu, minha querida, que eu queira ver-te fresca e bonita? Onde está a irrazoabilidade deste meu querer?
Helena querida, fico a ansiar o teu sorriso.

Braga, 14 de Julho de 2004


José Cadima

terça-feira, outubro 23, 2007

Tenho medo

Caminho pela estrada escura e suja
procurando chegar a algum lado,
sem certeza do conseguir.

Enquanto caminho, questiono-me
sobre o que se me oferecerá no horizonte que prescruto,
receoso do que o futuro me reserva.

O medo assalta-me,
mesmo que para a morte se sugira ser cedo.
Sobretudo, tenho medo de ser como quem odeio,
na insegurança sobre ser quem tu amas.

José Pedro Cadima
(reescrito por José Cadima)

domingo, outubro 21, 2007

Porque me desfaço eu em lágrimas?

Choro. Desfaço-me em lágrimas.
Olho-me ao espelho e sinto-me ridículo.
Reparo, então, na ironia de me ver chorar
e questiono-me sobre o sentido, o absurdo desse meu gesto.
Porque hei-de eu chorar?
Porque me é tão penoso amar alguém?
Por alma de quem me auto-flagelo?
Pela minha própria alma, que não sei viver a vida sem entrega?
Por alma de quem amo e me faz padecer deste modo?
Mas, se me quer tanto quando diz querer,
porque há-de desejar este meu choro?
Vendo vem as coisas, talvez a dificuldade resida aí mesmo,
na sua insensibilidade para o amor
e, se assim for, o choro perde todo o sentido;
o meu choro não passará de auto-flagelação.
Porque me desfaço eu em lágrimas?

José Pedro Cadima

sexta-feira, outubro 19, 2007

O inferno como sentença

Muitas das situações que vivemos são absurdas. No entanto, esta, depois de morto, ganha um valor para além do absurdo em si: mesmo agora, no inferno, penso em ti.

A vida depois da vida tem destas coisas. Ando perdido por entre o sentido de um mundo cheio de respostas onde, horrivelmente, falho em compreendê-las. A verdade, vista de tão perto, causa-me incompreensão! Talvez se a minha penitência não fosse esta e tu tivesses vindo comigo para aqui, eu me comportasse como o homem que era e sentisse que a verdade era diferente da mentira vivida em terra.

Quando cá cheguei, notei depressa o calor nauseante e espesso que me obriga a contorcer de dor. As almas penadas dos assassinos ouviam-se por entre as paredes do meu novo lar. Percorrendo passeios paralelos à lava, encontro submersos os tesouros perdidos de quem, pela ambição, não se soube controlar.

O inferno em nada se compara à visão que a sociedade mantinha dele. Não há demónios a empurrarem-nos para calabouços ou a enfiarem-nos em enormes caldeirões que fervem sem parar. O inferno reserva-nos a todos algo pior: quem por natureza é mau, terá, tal como um bom, algo que nunca quis perder. Assim, a pena de cada um é cumprida tirando-lhe aquilo que mais deseja.

Os bons nem sempre recebem aquilo que desejam, mas os maus perdem-no sempre. Os maus que querem paz, nunca a irão ter. Gritam e mutilam-se, querem ficar num estado em que nada mais importe, mas importa: ficam com a paz, a paz que nunca lhes chega e nunca os deixa verdadeiramente descansar.

Alguns dos maus são quase bons; queriam, a seu modo, fazer algo pela sociedade. Não fizeram e aqui estão. A sua condenação é feita porque no momento de escolher entre o bem e o mal escolheram não fazer nada e o mal venceu. O assassino que mata é atormentado todas as noites pelo espírito da vítima. O cúmplice é atormentado pela sua consciência. Os que têm um peso na consciência, procuram respostas que já têm. Querem-nas diferentes e afundam-se ao tentar atravessar os canais de lava, pensando que do outro lado a resposta será melhor.

Tanto eu, mau, como tu, boa, fomos condenados. E tu também sofres pela minha penitência, mesmo aí no céu. Sei que assim é. Aqui no inferno, verdade seja dita, existem mais mulheres do que homens. Todas sedentas de mimos e de um companheiro, mas como posso eu desejá-las se só em ti penso?

Quem me dera ter sido um assassino, para perder a paz, ou um cúmplice, para procurar respostas frustrantes. Era mau, mas só às vezes: enxotava o gato e as pessoas, porém, nunca te enxotei a ti. Tinha mesmo a minha pena que ser o teu paraíso, sendo tu quase tão má como eu? Foste para o céu e aqui me deixaste, só para que perdesse o que mais desejava.

José Pedro Cadima

quarta-feira, outubro 17, 2007

Somos todos o mesmo

Somos todos o mesmo:
o mesmo sangue,
a mesma ideia.

Somos todos o mesmo:
o que aprende,
o que ensina.

Somos todos o mesmo:
o que sofre, o que chora;
o que desilude, o que ignora.
Somos todos o mesmo!

José Pedro Cadima

segunda-feira, outubro 15, 2007

Faz de mim o teu herói

Diz-me que escrevo bem.
Diz-me que sou o melhor.
Chama a Camões e Torga amadores.
Faz de mim o teu herói.

Diz que choro,
que escrevo,
que abraço,
que amo
melhor que toda a gente.
Diz que sou o teu herói!

José Pedro Cadima

sábado, outubro 13, 2007

Quero sonhar

Quero sonhar,
mas a mesquinhez do quotidiano
continua a tolher-me.
Quero viver,
mas o sonho permanece irrealizável.
Quero construir,
mas a vida e tu, na tua desesperança, estão a destruir-me.
Desespero por romper este circulo vícioso
de angústia e descrença.
Quero ser sonhar.
Quero recolher-me nos teus braços
e viver o seu aconchego.

José Cadima

sexta-feira, outubro 12, 2007

Criar ímpeto - 2ª parte

Neste momento, são dez horas e o Eduardo faz ecoar os seus passos no corredor. Sei que vai haver reunião na minha hora de almoço e ninguém me disse nada mais uma vez. Ouvi na casa de banho, enquanto estava na retrete. - Gabriel, sempre a ouvir a mesma porcaria! Vou fazer queixa se não baixares esse barulho! – Diz-me o Eduardo e continuou a andar.
- Eduardo…- Chamo por ele. Ele olha para trás. Na minha mão está uma pistola, a Beretta 92FS.
- Que estás a fazer Gabriel?
- Barulho!
Disparo. Nunca nada me tinha feito sentir tão bem. Era a terceira vez que tomava a iniciativa de reagir nesta empresa. Tinha prometido a mim mesmo que seria a última e, de uma forma ou de outra, tinha de resultar.
- Que se passou aqui?! Ouvi tiros!!
- Olá Roberto…
- Ga…briel?! - Gagueja Roberto exteriorizando o medo que o assaltou.
- Toma um curto.
Disparo sobre Roberto. A sensação de alívio sobe-me à cabeça. Corro até à sala de convívio e mato três tipos que estão lá sempre; nem o nome deles sei, mas sei que não fazem nada e recebem mais do que eu.
Vou em direcção ao Ricardo. Está debaixo de uma cadeira com as calças molhadas.
- Por favor Gabriel, não me mates…
- É o meu novo programa de gestão. Tenho de ser rápido a pô-lo em prática antes que me roube a ideia.
Sexta bala num sexto idiota. A um metro de distância, não falho.
Vou pelas escadas até ao piso de cima. A Leonor está no gabinete do director dos Recursos Financeiros. Estão os dois num namorisco.
- Não acredito que recebem mais por fazer isto…
- Gabriel?! – Gritam os dois em simultâneo.
- Eu também namoriscava a Leonor e não recebia mais por isso…
- Seu… - A sua frase foi interrompida pelo aparecimento da minha arma.
- Se fosse preciso eu namoriscava o Sr. director só para receber o que recebe a Leonor.
Foram duas balas pelos dois cornos.
Matei primeiro o director para poder ver Leonor chorar, não pelo director, pelo medo da morte.
O André Martins mandava o elevador subir desesperadamente. Nem olhava para trás: o medo era demasiado. Deve ter ficado ainda com mais medo quando sentiu o metal frio na nuca.
- Estive agora com o director dos Recursos Financeiros e ele disse-me que tem de haver uma redução no pessoal.
Mijou-se de medo. A arma justificou o medo. Sinto-me bem, sinto-me aliviado. Penso agora que estou a ser incompetente pois a escolha da arma talvez safe o meu bem amado director dos Recursos Humanos e uma bomba tinha-me poupado todo este trabalho.
O elevador ia a descer e abriu-se no meu piso. Era o meu querido, amado, sacrificado director! Quem poderia imaginar que o André iria ajudar-me no meu melhor projecto!
- Olá Sr. director! – Sei que os meus olhos reluziram de tanta alegria.
- Que vem a ser isto?
- O cheiro no elevador é do senhor. Não me culpe disso também a mim!
A cara do Sr. director adquiriu uma expressão pouco feliz e a arma largou as restantes balas no seu corpo.
Entrei no elevador e fui até ao rés-do-chão. As portas abriram e o Jorge ficou a olhar para mim com ar misto de medo e de estupefacção.
- Bom dia Jorge…
- Sr. Gabriel…
Apontei a arma à minha própria cabeça.
- Jorge… Não te preocupes. Vim cá abaixo dizer-te que foste promovido.
A polícia chegou ao local. Levaram o Jorge para interrogar. Os jornalistas cercaram o local. Aquilo era o novo holocausto. Aquilo era e vai ser durante muitas semanas o título dos jornais.
A empresa acabou, o Jorge ficou sem emprego. Felizmente, um jornalista pagou-lhe para que ele falasse do incidente e o Jorge ficou rico.
Ele foi até à minha campa e agradeceu a promoção.

José Pedro Cadima

quarta-feira, outubro 10, 2007

Criar ímpeto - 1ª parte

Entrava no edifício da empresa e cumprimentava a única pessoa minimamente educada:
- Bom dia Jorge!
- Bom dia Sr. Gabriel – Responde-me amavelmente o porteiro.
Mando descer o elevador, as portas abrem-se e o Presidente do Departamento de Recursos Humanos olha para mim. Nunca é bom, nunca é agradável quando alguém me olha assim; foi algo que entendi desde o primeiro dia que aqui entrei.
- Está atrasado Gabriel!
- Não entendo, no meu relógio são 9 horas.
- Bem, é que no meu já são 9 horas e 10…- realça ainda num tom mais intimidatório-. Suponho que adiantar o seu relógio 10 minutos não lhe faça mal.
- Obrigado. – Baixo a cabeça mais uma vez.
Ontem acertei o meu relógio pela televisão e confirmei as horas via Internet. Um dia tem 23 horas 56 minutos 4 segundos e 9 centésimos e há um relógio via Internet que me dá a capacidade de ser a pessoa mais certa de sempre, mas pouco importaria se me dissessem que um dia tem 25 horas. Eu mandaria fazer um relógio para me orientar por ele, do mesmo modo.
O meu querido presidente do Departamento de Recursos Humanos largou-se no elevador e levei então comigo o seu cheiro para o piso 4. Saí do elevador e respirei ar quase fresco. Um ambientador irrespirável está ligado algures num gabinete, longe do meu, felizmente.
- Olá Gabriel! – Diz-me a minha bela ex-namorada.
- Olá Leonor… - Preciso que depois me faças uma pesquisa sobre o projecto do Sérgio. Ele quer investir um monte de dinheiro numa empresa com a qual nunca trabalhámos. Italiana, percebes?
- Vou primeiro ao meu gabinete e já trato disso.
- Obrigado.
A Leonor afasta-se com o belo balançar de ancas. Éramos namorados mas, a certa altura, ela traiu-me com o director de Recursos Financeiros e foi promovida. As minhas insónias já não me deixam dormir, daí que, para me manter acordado no meu gabinete, ponha a minha máquina de café a funcionar e ligue o leitor de CDs.
Ás dez horas, o Eduardo tem por costume passar no meu gabinete para mandar a única pessoa de bons gostos musicais existente na empresa desligar o leitor de CDs. Diz que é barulho. Eu respondo-lhe que é “punk-rock” e ele volta a dizer que é barulhento. Desligo então o leitor de CDs.
Segue-se a visita do idiota do Roberto, que por aqui passa para pedir-me café pelas dez e meia. Na primeira vez, dei-lho com muito gosto. Pareceu-me uma pessoa simpática e com dava para falar. Descobri depois que era um ser falso que apenas me vinha pedinchar café todos os dias.
Nunca nenhum projecto meu passou nesta empresa mas sei que todos os meus projectos fazem dinheiro para esta empresa. A única diferença é que quem recebe a comissão pela autoria do projecto é o recentemente promovido a director de Marketing, o André Martins.
Nesta empresa todos se tratam mal. Dificultar a vida aos colegas é a regra. Não têm vida pessoal satisfatória e quem paga são os funcionários com as posições inferiores na hierarquia da organização.
De tarde, sou obrigado a apresentar contas por algo que não fiz. O sacrificado presidente do Departamento de Recursos Humanos dá um sermão aos seus peixes enquanto eu tento perceber do que fala ele. A Leonor, muito sagrada, para os Indianos, por sinal, consegue sempre deixar-me trabalho para fazer cinco minutos antes de eu pretender ir-me embora. Assim sucede mesmo que eu tenha ficado duas horas a perguntar-lhe se havia algo que era preciso concluir.
Ás vezes, resolvem marcar reuniões para a hora do almoço. Comem todos mais cedo e só me avisam na hora. Passo fome até às seis horas da tarde.
Na quinta-feira passada, tomei ímpeto: apresentei ao Ricardo, director do serviço, um programa de gestão que faria o nosso departamento ter mais peso dentro da empresa, ao permitir passarmos a ter acesso a mais recursos e viabilizar o aumento do volume de vendas da empresa em vinte porcento. Como resposta, fui ameaçado de despedimento. O programa vai passar a ser aplicado na empresa no mês que vem, altura em que serei transferido para outro departamento. Provavelmente, “Limpezas”.
Também já tomei a iniciativa de tornar todo o local mais agradável: passei a ser mais educado com todos meus colegas, mais participativo, isto é, tentei quebrar o gelo. Eles vingaram-se mandando a Internet do meu gabinete abaixo, enquanto eu estava ocupado com um importante projecto. Só recebi metade do meu salário nesse mês…
(continua)
José Pedro Cadima

segunda-feira, outubro 08, 2007

"O perfil do candidato"

"Tome-se 250 gramas de bacalhau seco, alho, colorau, azeite e vinagre; desfie-se o bacalhau em pedaços pequenos e polvilhe-se bem com colorau; regue-se de seguida com azeite e vinagre…
Perdão! Tinha na ideia tratar o tema «perfil do candidato» e fugiu-me a esferográfica para a receita das punhetas de bacalhau.
Dizia eu, então, o assunto que me proponho desenvolver nesta crónica é o «perfil do candidato» ou, melhor dizendo, dar uma pequena contribuição metodológica para a questão sempre candente do perfil do candidato ideal; candidato ideal aos mais altos cargos do aparelho de estado mas, também, à liderança de um qualquer partido político ou de uma associação recreativa dos amigos do chinquilho, por exemplo.
Parecendo complexo o processo, é bem simples afinal, como adiante poderão constatar. Tudo está no uso da metodologia adequada. Metodologia, aliás, esta que não apanhará desprevenido quem, labutando num organismo público ou afim, já foi confrontado com a necessidade de abrir concurso de recrutamento de pessoal, impondo-se-lhe, simultaneamente, a obrigação moral de encontrar emprego para uma sobrinha, um afilhado ou outro qualquer aparentado.
Pois bem, a coisa passa-se assim:
1º) tira-se retrato de corpo inteiro do marmanjo ou moçoila que se tem em vista. Convém que seja a cores e o aparelho obedeça aos melhores requisitos em matéria de qualidade de reprodução;
2º) com recurso a material identicamente apropriado, rasura-se o bigode, dá-se-lhe uma tesourada na guedelha, endireita-se-lhe a coluna, eventualmente, veste-se-lhe fato apropriado à função. Pode-se, também, disfarçar a coloração do cabelo e dos olhos e arredondar o formato do nariz;
3º) agita-se tudo muito bem e dá-se-lhe a necessária publicidade, não descurando a oportunidade de uma intervenção na televisão, em horário nobre, ou a convocação de uma conferência de imprensa;
4º) arrebanha-se o primeiro grupo de pacóvios que estejam à mão e encarregam-se os ditos de publicitar o perfil encontrado do candidato.
Aqui está! Tão simples quanto isto. Está encontrado o perfil ideal do candidato para o lugar a preencher.
Obviamente, em razão da relevância do lugar importa fazer crescer o grupo de arregimentados.
Conforme poderá verificar, com um bom uso da metodologia que lhe proponho é bem mais fácil chegar ao perfil do candidato ideal para presidente da agremiação local, para Primeiro-Ministro ou Presidente da Republica e, até mesmo, presidente do PSD."

J. C.

(reprodução integral de crónica do autor identificado publicada no jornal Notícias do Minho de 95/02/18, em coluna regular genericamente intitulada “Crónicas de Maldizer”)

sexta-feira, outubro 05, 2007

Fazer da vida uma ideia

Não usarei a minha vida
como se usasse o palco de um teatro.
Recuso-me!
Viver tudo de novo,
repetir gestos, esperanças, desilusões.
Sobretudo, repetir desilusões.
Recuso-me!
Quero viver mais.
Quero descobrir novos caminhos.

Passou-me pela cabeça essa ideia.
Um pensamento, enquanto for pensamento,
não faz mal a ninguém.
É como o fogo:
o que dói é cair nele.

Não usarei a minha vida
como se usasse um palco!

José Pedro Cadima

quarta-feira, outubro 03, 2007

Sobrevivente

De noite
As águas do Cávado não têm cor,
Só ao nascer do dia esta volta
E com ela a coruja do mato
Vem visitar-me

No seu voo borboleteante,
Penetra no jardim da escola

Orgulhosa, disciplinada,
Agarra a sua presa
E rapidamente esgueirada
Se recolhe naquela árvore caducifólia.

De costas,
Asas ligeiramente voltadas para baixo,
Quietando o estado do seu corpo,
Olha a margem do Cávado,
Parece rir
Da confiança...
De ter pousado
Na minha mão.

Sobrevivente, flagela a rã.

Helena, MC

terça-feira, outubro 02, 2007

Escrever algo belo

De costume,
padeço bastante quando escrevo.
Doí-me em razão das emoções que me acodem
e dói-me porque fico com o sentimento
de que é muito mau o que escrevo,
tal qual algo que tivesse sido regurgitado.
Isso sucede-me mesmo quando escrevo bem,
se a modéstia me permite dizê-lo deste modo.
Só muito depois do texto ter sido escrito,
quando está já esquecido,
é que sou capaz de voltar a lê-lo e perceber-lhe a forma.
Então, leio com certo prazer,
e a dúvida maior
de ter sido o seu autor.

José Pedro Cadima