domingo, setembro 30, 2007

Loucura

A multidão cercava o local. Aproximei-me lentamente para ver o que se passava. No cimo de uma varanda, um homem gritava ao seu público:
- Não podem ver!? É a cegueira! Todo o vosso trabalho, todo o vosso sofrer… Para nada! É o que vos digo! Para nada!
A meu ver, aquele era um homem sozinho, alimentando rancor em relação à vida que teve.
- Pensem na vida que tiveram, nas pessoas que amaram, no que elas vos fizeram sofrer. Pensem! Façam de vocês homens e mulheres com algum orgulho!
A multidão olhava-o sem perceber o sentido das suas palavras, sem entender a razão da sua loucura.
Levantou um frango ainda pequeno com uma mão. Ele piou baixinho e as pessoas gritaram e suspiraram. A polícia, em baixo, fazia o homem enervar-se ainda mais, ao mesmo que o povo tentava acalmá-lo. Nunca se havia dado semelhante situação. Eu continuava, no meio do público, a olhar, interessado, tanto para o público como para o homem na sua varanda.
- Este são vocês, cada um de vocês sem excepção alguma!
Empunhava agora o frango no ar, sentia-se na voz dele a esperança de que a multidão o percebesse. Sentia-se também o desespero de uma vida. Que poderia abalar um homem de tal forma? Que poderia magoar alguém até à loucura?
- Aqueles de quem gostamos, demoníacos seres, que nos levam à loucura, que nos criam dependência e nos atraiçoam, tanto antes como depois do desejo... Sim! São eles quem nos mata! – a sua agitação reduziu-se levemente, esperando resposta da multidão. Essa, porém, continuava sem perceber. Não via o sofrimento do velho, não compreendia a sua mensagem.
O pobre homem continuava à espera da atenção que julgava merecer, procurando a resposta da multidão, mas nada. Todos merecemos o reconhecimento do nosso sofrimento, no entanto, no entanto, presumia-se que ninguém se lembrasse do reivindicar.
- Pobre homem, a mulher traiu-o e agora está assim – comentava um outro homem também já com uma certa idade, amigo do que estava na varanda, por certo.
- Este frango – recomeçava o velho da varanda – foi criado com amor e ama aquele que lhe dá a água para beber, aquele que lhe dá o milho para comer… - percebeu-se então um leve suspiro, seguida do trespassar do pescoço do frango por uma faca.
-Não tinha nada que amar! Se fiz com que me amasse foi para vos mostrar que não há que amar seja o que for!
- Triste, é uma sensação triste… - o público revoltava-se. A cena fora desnecessária para aqueles que ainda não a entendiam, que eram quase todos os que a ela assistiam. A complexidade que envolve o sofrimento de quem ama, isso ditava.

José Pedro Cadima

sexta-feira, setembro 28, 2007

Hora da escrita

Certo dia,
comecei a escrever os meus textos
com horas de registo.
Não interessa, não importa
em que dia foi.
Não importa os dias já que são iguais,
um após outro.
Interessa-me sim a hora
porque, assim, lembrar-me-ei
aonde se situava o Sol e a Lua
no momento da escrita,
especialmente da Lua.

José Pedro Cadima

quarta-feira, setembro 26, 2007

Sentimentos mistos

Dói-me um pouco
por todo o lado.
Ninguém diria que vivo
em pleno paraíso, no lugar de Miguel.
Na minha cabeça,
o inferno, o centro da terra.

Chamas que ardem cá fora
em forma de silêncio.
E, por dentro, um vulcão que ameaça explodir
em cinzas e chamas.

Anseio deixar entrar a paz
mas a pressão interior
persiste forte,
no limite da minha capacidade de controlar
as emoções que me assaltam.

José Pedro Cadima

sexta-feira, setembro 21, 2007

Eu senti

Ela chegou. Olhou-me. Terá talvez procurado também o meu olhar. Eu escondi-lho. Se ela o visse, veria demais. Ela sentiu-o. Eu senti-o.
As palavras que saíram de minha boca pareciam ter saído da boca de outro, pareciam ter saído da boca de alguém zangado. Ela procurou resguardar-se daquilo que eu sentia.
As palavras saíram da sua boca, mas as lágrimas antecederam-nas e desceram o seu rosto até, por fim, pinga a pinga, caírem sobre os meus pés mesmo antes da primeira palavra ser dita. Ela sentiu-o. Eu sei que o sentiu.
Eu levantei-me e fiz o que julguei que era apropriado fazer: abracei-a. Fiz de conta que não era aquele alguém zangado que antes parecera. Ela sentiu-o. Eu senti-o.
Ela envolveu-me em seus braços, passando-os por baixo dos meus. Apertou-me com força. Encostámos nossos corpos. Estávamos muito próximos um do outro. Percebê-mo-lo, ela e eu.
Beijei seu pescoço. Cheirei seu cabelo. Apertei-a contra mim, como me habituei e queria fazer e desejei poder fazer para sempre.
Já nos tínhamos sentido assim…
Acariciei a sua cara. Sua pele era mais suave que seda. Acariciou-me também. Sentiu a minha barba, o áspero tocar seus dedos. Sim, já nos tínhamos sentido assim.
Cheguei a sorrir. Cheguei a desenhar muito ao de leve em minha cara um encaracolar de meus lábios nos seus extremos. Percebia-se, agora, na sua face o arrependimento de me ter feito zangar. Ela sentiu-o. Eu senti-o.
Percebi, então, mais uma vez, que estava perante a minha musa. Ela, por contraponto, disse-me que, de todos os seus admiradores, eu seria sempre o seu preferido. Eu acreditei. Ela sentiu-0. Eu senti-o.
Cruzei o meu olhar com o dela. Peguei-a pelos braços, puxei-a mais para mim e dei-lhe um beijo que quis que fosse carinhoso e eterno.

Eu senti-o… Tu sentiste-o?

José Pedro Cadima

Um Beijo

Estão cem pessoas na sala. No entanto, o seu olhar está colocado em mim. Os meus passos percorrem o longo percurso que me leva ao destino. Passa alguém à minha frente mas fica transparente. Consigo ainda vê-la, consigo ainda sentir o seu olhar sobre mim. Não ando; rastejo até ela. Como um caracol, sou lento mas sei que lá vou chegar.
A sua respiração denuncia o seu medo. Apesar de rápida e forte, tenta esconder-se, como um soldado preparado para tudo mas com uma arma apontada à sua cabeça. Eu sou a arma!
O seu olhar e o meu confrontam-se e a cada passo que eu dou na sua direcção ela dá um atrás. Bastaram três passos para ela estar de costas encostadas à parede, três míseros passos para sair do esconderijo e perceber que a arma não a vai matar. O amor é mais forte que o ódio!
Minha cabeça inclina-se para baixo. Ela é mais baixa, mais frágil. Tenho que estar ao seu nível. Tenho de me redimir perante a deusa. Será ela a minha deusa? Agora é a minha respiração que acelera, que sente medo, mas não o escondo. Quero estar com a respiração dela. Quero harmonia!
Morde os lábios. O meu olhar descai-se do seu olhar para os seus lábios. Fui eu que cedi. Apanhado na armadilha de quem tinha medo, afinal sou eu a presa. Ela é a caçadora. Inclino a cabeça para a direita e aproximo meus lábios. Sinto um arrepio.
Nossos olhos semi-cerram-se. No entanto, não paramos de olhar um para o outro. É dos arrepios certamente. Meus braços aproximam-se da sua cintura e, devagar, minhas mãos pousam no seu corpo, como num gesto de baile cuja bailarina quer ser levantada. Mas, no entanto, isso só se faria com os lábios.
Minhas mãos, aos poucos, contornam seu corpo. Uma mão faz o seu corpo contorcer-se enquanto me aproximo para que o meu corpo toque o dela. As suas mãos sobem pelos meus ombros e agarram o meu cabelo com força. Nada as faria largá-lo. Nada!

Ela fecha os olhos. É o momento…

José Pedro Cadima

quinta-feira, setembro 20, 2007

O sabor de uma nova paixão

Em mim, já só sinto amor,
já só sinto paixão.
Em mim, já pressinto o sabor
de uma nova desilusão.

Como se não fosse bastante cruel
este invenerável mundo,
vieste tu com asas de papel,
qual fada de meus sonhos, tocar-me bem fundo.

José Pedro Cadima

terça-feira, setembro 18, 2007

Nestes dias penosos ...

Nestes dias penosos, questiono-me se vale a pena...
Na falta de resposta conclusiva, procuro a mais forte das alienações que conheço: o trabalho; o trabalho esgotante, que não me deixa espaço para que continue a questionar-me sobre o vazio que me assiste.
Mau, mau mesmo são as pausas!

José Cadima

sábado, setembro 15, 2007

Água…

A vida veio da água
e para a água há-de voltar,
nas tristes lágrimas
acabadas de libertar...
No meu ouvido continua a soar o teu "amo-te",
mas é apenas o passado a ecoar.
As lágrimas escorrem, copiosamente, dos meus olhos.

José Pedro Cadima

quinta-feira, setembro 13, 2007

Solto no escuro

Ser solto no escuro, sem lugar para onde ir.
Ter medo de olhar para trás
e saber que também à frente não verá aquilo
que receia não poder alcançar.

Respirar devagar,
escondido no negro de um perigo inexistente.
Ter medo de um nada
que nos arrepia a espinha.

Olhar para um lado e para o outro.
Ter medo de descolar do objecto
com que nos procuramos confundir.
Sentir que ficando quieto ninguém nos apanha,
porque talvez o perigo passe ao lado.

Depois, para fugir,
é preciso ainda mais coragem,
mesmo que seja preciso dar só um passo.
É que o medo do escuro pode correr mais do que nós.

José Pedro Cadima

terça-feira, setembro 11, 2007

Reconhecer

Incapaz de reconhecê-lo,
a confusão instaura-se.
Andava antes à procura de uma saída
e recuso-me agora a sair.

Vendo embora a entrada,
recusava-me na altura a entrar.

Nada disto faz sentido.
Nunca fez sentido.
Era um pensamento condenado.

Agora penso nos teus erros,
enquanto me recuso a acreditar
que alguma vez tenha errado.

Assim se demonstra uma outra vez
quanto o amor é capaz de nos confundir.

José Pedro Cadima

domingo, setembro 09, 2007

A vida é um pecado

Há quem diga que tenho a mania do pessimismo.
Pois bem, dir-vos-ei: sou irónico!
Irónico e não pessimista, pois neste tempo histórico,
quando deito a mão ao meu coração
e tento agarrar a paixão
de viver e te ter a meu lado,
só sou capaz de concluir
que a minha vida sem ti é um pecado.

José Pedro Cadima

quinta-feira, setembro 06, 2007

Vida monótona

Porquê eu?
Porquê todos os dias?
Estarei destinado a ter esta vida
monótona e repetitiva?
Como se fosse um clone,
cada dia parece clonado do dia precedente,
mostrando um sorriso que cobre a minha tristeza,
as minhas mágoas,
os meus choros e o meu tédio.

José Pedro Cadima

terça-feira, setembro 04, 2007

Sabia lá eu ...

Sabia lá eu o que era o amor.
Não desconfiava mesmo o que seria
mergulhar no amor, de corpo inteiro.
Sabia o que eram palavras doces
e isso foi-me bastando.
Nunca imaginei quanto o amor me iria fazer padecer
e questiono-me, agora, se não teria sido melhor
permanecer na ignorância,
caso isso fosse possível.
Sabia o que eram versos
mas imaginei-os cultura da beleza e da forma
e não gritos de amor ferido.
Sabia lá o que era o amor.

José Pedro Cadima

sábado, setembro 01, 2007

Fotografias

Estive a ver fotos tuas,
tentando escrutinar as razões
pelas quais me apaixonei por ti.
Esse percurso levou-me até possiveis definições de beleza
e ao que me pode inspirar sensações de bem-estar.

São múltiplas as definições de beleza
que agora tenho,
tantas quantas as expressões de doçura
que descortinei em cada foto tua
que tenho em minha posse.

É certo que não sei se os traços que aí encontrei
são originariamente teus
ou se foram os meus olhos
que os desenharam no teu rosto,
mas isso pouco importa.

José Pedro Cadima